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Mombojó lança o álbum "Carne de caju" em homenagem a Alceu Valença (Foto: Laura Proto/ Divulgação)

Um papo com a Mombojó, que lança disco com o lado B de Alceu Valença

Com 23 anos de carreira, grupo pernambuco se reinventa mais um vez e busca novos públicos com "Carne de Caju", em que reinterpretam faixas do repertório de Alceu

Criada no Recife em 2001 e uma das referências da cena surgida com o manguebeat de Chico Science, a banda Mombojó rompe a tradição de lançar álbuns autorais e manda Carne de Caju para as plataformas digitais, que tem muitas referências na obra de Alceu Valença.

Ao longo da trajetória, a banda acumula sucessos como “Deixe-se Acreditar”, “Duas Cores” e “Cabdela”. “Chegamos até a escolher umas cinco músicas que já começamos a gravar, mas Felipe trouxe essa ideia de fazermos um disco de intérprete, usando a obra de Alceu como referência”, revela o baixista Zé Guilherme.

Menos de um ano depois da origem da banda, quem acompanhava o efervescente celeiro cultural da capital pernambucana estava de olho no grupo — prova disso é que, mesmo sem um primeiro álbum lançado, eles já integravam o line up do 10º Abril pro Rock, um dos principais festivais de música do país. “Uma grande diferença do Mombojó e de outros artistas da nossa geração é que tivemos influências locais em pé de igualdade com outras influências nacionais ou internacionais”, afirma Guilherme.

Hoje, com 23 anos de estrada, os músicos Felipe S. (guitarra e voz), Marcelo Machado (guitarra e voz), Zé Guilherme (baixo e voz), Chiquinho Moreira (teclados e vocoder) e Vicente Machado (bateria e voz) já colecionam passagens pelo Lollapalooza, quando dividiram os palcos com a goiana Boogarins, e festivais como Planeta Terra, Tim Festival, Porão do Rock e Brasil no Ar, em Barcelona, na Espanha. Entre as colaborações e participações especiais em trabalhos estão nomes como a própria Nação Zumbi, Lenine e Manu Chao.

Com oito faixas, o novo disco é um tributo a Alceu, trazendo releituras de canções “lado B” do autor dos hits “Morena Tropicana” e “Anunciação”.

Confira o bate-papo que batemos com exclusividade com o baixista Zé Guilherme:

De onde surgiu a ideia de produzir um trabalho que reunisse a obra de Alceu Valença?

A ideia original veio de Felipe. Nós estávamos iniciando o processo de produção do nosso sétimo disco, que a priori seria um trabalho autoral como os demais, chegamos até a escolher umas cinco músicas que já começamos a gravar, mas Felipe trouxe essa ideia de fazermos um disco de intérprete, usando a obra de Alceu como referência, e também como uma forma de dialogarmos e criarmos conexões com outros públicos.

Ao longo da trajetória de vocês, como aconteceu a aproximação de vocês com a música de Alceu?

Nós todos crescemos e passamos a maior parte da vida em Recife, e viver em Pernambuco é sinônimo de viver muito próximo da obra de alguns artistas locais, e Alceu faz parte desse grupo, junto com Luiz Gonzaga, Reginaldo Rossi, Nelson Ferreira, entre vários. Então pra nós a obra de Alceu é uma referência inexorável, são as músicas que tocavam no carro e no ônibus indo pra escola, são as músicas que tocavam na praia, nos botecos do centro da cidade.

Como músicos houve, claro, uma reconexão com essa obra a partir dessa nova perspectiva profissional, de visitar esse lugar que é tão referencial, mas munidos de outras ferramentas de percepção e análise, e isso se deu mais intensamente ao prepararmos o repertório para este trabalho.

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A arte da capa do álbum “Carne de caju” é de Rafael Olinto.

Como se deu a escolha das oito músicas que compõem o registro?

Houve uma escolha consciente e coletiva de NÃO enfatizar tanto o Alceu dos anos 1970, que tende a ser mais celebrado e regravado. Optamos por selecionar faixas de um universo que começa ali em 1982 com “Como dois Animais”, do disco Cavalo de Pau, e que é uma fase muito marcada pela parceria de Alceu com Paulo Rafael, que também foi guitarrista do Ave Sangria e do Phetus, bandas seminais da cena alternativa recifense, e que também é um grande ídolo da banda. Apesar da fase setentista de Alceu ser um pouco mais celebrada, é essa fase dos anos 1980 e 90 a que nos acompanhou mais de perto, porque era o que tocava no rádio, na televisão.

O processo então foi democrático, a partir de uma seleção maior de faixas fomos escolhendo e votando, e dentre as mais votadas fomos vendo as propostas de arranjo mais interessantes que surgiam também, quais músicas ficavam melhores nas nossas vozes.

Viver em Pernambuco é sinônimo de viver muito próximo da obra de alguns artistas locais, e Alceu faz parte desse grupo, junto com Luiz Gonzaga, Reginaldo Rossi, Nelson Ferreira, entre vários

Zé Guilherme, Mombojó.

Ao lançar o novo trabalho, vocês botaram no mundo também o clipe de “Romance da Bela Inês”. Qual a escolha dessa faixa para ser a primeira a ganhar um produto audiovisual? Tem um sentido especial essa canção?

“Bela Inês” já havia sido escolhida para ser o terceiro single, uma música de destaque quando o disco fosse lançado agora em janeiro. Além disso, houve uma conjunção de fatores, a possibilidade de trabalhar junto com a atriz Mayara Pera, nossa produtora Laura Proto e também Samuel Vieira – que é nosso parceiro permanente e já tocou baixo na banda – devido ao fato de todo mundo estar em Recife no final do ano. Sentimos que Mayara seria uma ótima escolha para representar a personagem central da canção, e tivemos a oportunidade de filmar na região da Vila de Nazaré, no litoral sul do estado, uma região com uma beleza natural incomum.

Além de ser uma canção que permeia a memória afetiva de todos os membros da banda, também escolhemos esta faixa por ela ter os vocais do Marcelo nos versos, um recurso que já usamos antes na faixa “Hello”, de 2014. Um fato curioso é que nossa versão é uma espécie de “meta-releitura” já que a faixa original cita outra música do próprio Alceu, “Espelho Cristalino” de 1977, lançada 10 anos antes da própria “Bela Inês”.

Mombojó começou a carreira há duas décadas anos, de forma independente, chegaram a trabalhar com gravadora e estão novamente trabalhando de forma independente. Quais as diferenças do mercado da música independente vocês enxergam nessa época?

O mercado da música como um todo mudou muito significativamente nos últimos 20 anos, foram muitos os vetores desta transformação. De certa forma, o mercado para os independentes como nós está um pouco melhor, muito porque o grande circuito de gravadoras se pulverizou, mas por outro lado nós precisamos estar atentos às formas como os artistas estão dialogando com seu público hoje em dia, como chegar nos lugares para tocar.

Por um lado, esse aspecto mais “fonográfico” da carreira foi mais transformado pelas tecnologias digitais e principalmente pelo streaming como solução de acesso. Por outro, o mercado dos shows na nossa opinião acabou sendo afetado pelo período mais intenso da pandemia e pela mudança nos hábitos de consumo das pessoas neste sentido. Temos conversado muito que hoje em dia há menos bandas novas, e muitos artistas solo se lançando, e que muitas vezes tocam ao vivo com uma estrutura menor, com uma outra pessoa responsável pela eletrônica ao vivo e às vezes um outro instrumentista.

Não fazemos nenhuma crítica a esse formato, pelo contrário, mas é inegável que essa é uma tendência que naturalmente impacta uma banda que precisa viajar com 5 integrantes e requer uma equipe maior. Por outro lado isso também oferece desafios interessantes no sentido de nos reinventarmos como artistas fonográficos e dos palcos.

Foto 8 carne de caju por Laura Proto

A formação da banda mudou muito com o tempo. Como a saída dos integrantes mudou o som de vocês?

Ao longo destes quase 23 anos as saídas da banda aconteceram por motivos muito distintos. Infelizmente, perdemos o Rafa precocemente, e esta perda foi naturalmente insubstituível, como perder uma pessoa querida ou um familiar próximo, tanto que não buscamos substituí-lo, por ser insubstituível. A saída de Marcelo Campello se deu um pouco por consequência disso. Ele e Rafa eram muito próximos pessoalmente e na banda eram uma espécie de dupla dinâmica, eles faziam muita coisa que era complementar de um em relação ao outro.

Campello também saiu para se dedicar um pouco mais à formação acadêmica, e ao seu trabalho como compositor de música contemporânea e experimental, onde ele tem uma produção muito consistente. Já Samuel saiu para se dedicar à carreira de ator, que veio consumindo mais e mais tempo com o passar dos anos, mas tanto Campello quanto Samuel seguem sendo muito próximos dos membros da banda e ocasionalmente fazendo parcerias.

Toda banda é o resultado do amálgama de suas partes, então é natural que mudando os elementos o resultado final vai mudar também. Ninguém entrou no lugar de Rafa ou de Campello, de certa forma as funções que eles desempenhavam foram redistribuídas entre os membros remanescentes, mas com a entrada de Missionário José a seção rítmica da banda seguiu um outro rumo, muito devido à experiência dele como produtor e por ter tocado com muitos outros artistas.

Como enxergam a trajetória da banda, do começo da carreira para esta fase atual?

Além das mudanças de formação, a banda também mudou tanto pelas transformações externas – no mercado, no país, na economia – quanto pelas transformações internas. Quando lançamos o Nadadenovo, em 2004, fomos celebrados como uma banda revelação de uma molecada de Recife que tinha crescido sob a influência do Manguebeat. Hoje em dia, os membros da banda quase todos tem mais de 40 anos, temos filhos, rolou um processo de amadurecimento pessoal e artístico natural nestes 23 anos.

Nosso posicionamento no meio musical alternativo do Brasil também mudou muito, como já foi mencionado, passamos por duas gravadoras – a Trama e a Som Livre – lançamos muita coisa independente, tocamos em casas de show pequenas como a Casa do Mancha em SP ou a Audio Rebel no RJ, mas também nos maiores festivais do país, então também é difícil sermos surpreendidos por grandes novidades.

O Mombojó surgiu na ressaca do movimento manguebeat, responsável por colocar Pernambuco no mapa-mundi da música. Qual sua influência na formação e na sonoridade de vocês?

Total! Uma grande diferença do Mombojó e de outros artistas da nossa geração é que tivemos influências locais em pé de igualdade com outras influências nacionais ou internacionais. Tivemos muita influência principalmente da Nação Zumbi e dos Devotos, a única banda “de fora” que chegou a nos influenciar neste mesmo nível foi o Stereolab, provavelmente. Mas além destas bandas, toda a efervescência da vida cultural e musical da cidade nos anos do Manguebeat e pós-Manguebeat foi muito influente.

O manguebeat provavelmente também teve uma grande influência na formação original da banda ter sete integrantes, vários instrumentos diferentes, o que era uma coisa muito comum em Recife na época.

A música de vocês é rica e cheia de diferentes referências. Quais as influências da banda e o que vocês andam ouvindo?

Além destas influências “clássicas” sempre tivemos um gosto musical muito eclético, acho que há pouquíssimas coisas que ninguém da banda ouve. Sempre ouvimos muita música brasileira, além do próprio Alceu, esse universo de Jackson do Pandeiro, Cartola, Chico Buarque, e coisas dos anos formativos da banda como Air, Daft Punk, Tortoise, Four Tet, entre muita coisa diferente. Às vezes rolam umas fases de imersão também, como tivemos com Tinariwen e Khruangbin há não muito tempo.

Das coisas mais atuais temos ouvido Altin Gun, Duda Beat, Arca, Priscilla Senna, Mndsgn, e sempre buscando conhecer novos artistas.

Ouça Mombojó – Carne de Caju

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