salome 1.42.1
O filme Salomé. (Divulgação).

“Salomé”: hino à volúpia que nos move

Lisérgico e cintilante, longa-metragem pernambucano seduz pela originalidade 

“Salomé”: hino à volúpia que nos move
4

Salomé
André Antônio
BRA, 2025. 1h57. Drama/Ficção Científica. Distribuição: Vitrine Filmes
Com Aura do Nascimento, Renata de Carvalho e Fellipy Sizernando

Olhar de Cinema 2024 – Curitiba (PR)

Inspirada no mito bíblico, a tragédia Salomé, escrita por Oscar Wilde, foi publicada pela primeira vez em 1893, na França. A peça do dramaturgo irlandês escandalizou o público à época, por sua representação provocativa da adolescente cuja luxúria por um homem deságua em derramamento de sangue. A sede de liberdade movida pelo protagonismo do corpo. Desde longínquos anos, o cinema presta homenagem à personagem com adaptações tão interessantes quanto distintas; penso na distância estético-narrativa de obras como Salomé (1971), de Werner Schroeter, e O Último Mergulho (1992), dirigida por João César Monteiro. 

Leia mais: um papo com André Antônio: “o sexo e o tesão são algo centrais para a experiência subjetiva”

Numa versão urbana regada a experiências lisérgicas, o cineasta pernambucano André Antônio compõe uma obra visualmente exuberante. Salomé (2024) é, antes de tudo, um exercício autoral que tensiona as possibilidades formais propostas por um cinema de experimentações. Fruto da Surto & Deslumbramento, a produção se estabelece não apenas como uma das grandes realizações do cinema queer brasileiro dos últimos anos. Revela-se, igualmente, como lente teleobjetiva capaz de prenunciar caminhos para filmes independentes se aventurarem. 

Logo na sequência inicial do desfile, a narrativa reivindica a presença de corpos dissidentes com a naturalidade necessária de quem sabe a importância de filmá-los. Aura do Nascimento, atriz que dá vida à protagonista Cecília, irrompe como uma força da natureza, de olhar magnetizante e um domínio corporal poderoso. Se Aura é a cara e o corpo do filme, Renata de Carvalho é a alma. Quanto sentimento doado à construção afetuosa de Helena, mãe da personagem principal. A cena na qual a atriz transita do choro – ao assistir a um programa televisivo – às gargalhadas ao lado da filha é prova cabal do talento da intérprete.    

Salome 06
Aura do Nascimento e Renata de Carvalho: corpo e alma do filme. (Divulgação).

Entre as variantes de significados atrelados à cor verde, vitalidade e liberdade talvez sejam as sensações pensadas pela equipe durante a feitura do universo do filme. A direção de arte explora, sem freios, os tons verdachos em objetos cenográficos (portas, janelas, joias), além do verde néon do alucinógeno usado pelos personagens (engraçado perceber a semelhança visual do loló de Salomé com o líquido ativador de mesma cor de A Substância). Dentro da vibe quase cyberpunk do filme de Antônio, o espectador é inundado por elementos de sincretismo religioso e místico, desde a onipresença das imagens de santos ao longo da narrativa até a referência às fases da lua – que se torna uma grande esfera esverdeada perto do clímax. 

A ideia de divindade é permanentemente representada pelo diretor, como na cena de apresentação do personagem de João (Fellipy Sizernando), pelos olhos de uma atônita – e já apaixonada? – Cecília. Em slow motion, a câmera de André Antônio enquadra belamente o corpo do jovem entre rosas vermelhas e folhas de árvores. João é interessante condutor narrativo, pois é através dele que o espectador é levado a compreender o mistério no qual o filme está envolto. No intervalo de episódios que causam estranheza até à revelação final, o filme perde ritmo e se alonga em passagens sem tanto estofo (a mãe descobrindo a relação dos jovens, as rezas ao altar, as diversas tentativas de contato de Cecília com João sem sucesso). 

Ao focar no absurdo da realidade dos aparentes aliens andróginos (referência a Ursula K. Le Guin?), a narrativa abraça corajosamente o surrealismo e brinda o público com um final inesquecível. Importante destacar o capricho do figurino assinado por Libra Lima; absolutamente relevante para a história mergulhada no universo da moda, as roupas em Salomé são personagens à parte que assessoram a condução narrativa da trama. Palmas também para a equipe de maquiagem. 

Vencedor do prêmio de Melhor Filme no Festival de Brasília 2024, Salomé teve duas exibições no Olhar de Cinema com notória boa recepção por público e crítica. A obra também tem tido boa carreira internacional, participando de festivais de cinema em Barcelona, Berlin e Palermo. No Brasil, o filme terá distribuição da Vitrine Filmes, ainda sem data de lançamento definida. 

Leia mais coberturas