Glória e Liberdade
Esaú Pereira e Telmo Carvalho
BRA, 1h23. Animação/Drama
Única animação na mostra Competitiva Nacional de longas-metragens do 14º Olhar de Cinema, Glória e Liberdade (2025) propõe um exercício de futurologia para refletirmos sobre o tempo presente. Ambientado no ano de 2050, após levantes sociais que reconfiguraram o território brasileiro em novas entidades geopolíticas, o filme acompanha a trajetória de uma jovem cineasta pelas regiões Norte e Nordeste em busca de narrativas que a ajudem a compreender a situação do seu povo.
A obra combina técnicas de animação e linguagem documental, tecendo uma articulação entre memória e imaginação, passado e porvir, questionando os alicerces históricos do projeto de nação. A produção prevê um Brasil separatista na qual antigos estados se dissolveram ou agruparam-se em novas entidades sociopolíticas. Imaginativo, o roteiro nos apresenta a nação indígena Taua Sikusawa Kato (região referente ao Pará), a República de Caxias (Ceará, Maranhão e Piauí) e o Reino Unido de Pernambuco (formado também por Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte).
Para dar conta da fantasia narrativa, o roteiro de Letícia Simões e Pablo Nóbrega apoia-se numa abordagem extremamente expositiva, através de um texto que explica, tintim por tintim, as ideias do projeto. A decisão atravanca a fluidez narrativa e, mais problematicamente, dificulta o protagonismo da criação visual da animação – que é a grande qualidade do filme. O didatismo aparenta posicionar Glória e Liberdade em projeto destinado a ser exibido em escolas do país.

Agrada-me a cuidadosa concepção estética criada por Esaú Pereira e Telmo Carvalho – diretores de animação – para representar cada nação autônoma, com mudança de traços e cores nos desenhos. Ao retratar o Reino de Pernambuco, por exemplo, a cineasta aposta no aspecto cyberpunk, na qual a distopia tecnológica atinge seu máximo no filme. Nascida em Salvador, mas radicada em Recife há bons anos, Letícia Simões exprime sua familiaridade com a capital pernambucana ao inserir interessantes signos da cidade no filme, como a avenida Conde da Boa Vista e a ótima sacada sobre determinado shopping que, nada sustentável, vende-se enquanto empreendimento verde.
A trilha sonora original de Pedro Madeira sinaliza com destreza elementos multiculturais de diferentes regiões brasileiras. Estão lá a rima e a poesia dos repentistas, o compasso eletrônico do Manguebeat, as percussões do Axé baiano. Na sutileza da musicalidade, o filme reitera a riqueza da cultura do nosso país de proporções continentais. Reservando o “capítulo” da Bahia para seu momento conclusivo, a fotografia de Glória e Liberdade aposta no preto e branco com pontos de vermelho, numa estética que remete ao fabuloso Persépolis (2007), animação baseada no romance homônimo de Marjane Satrapi (que co-dirige o filme ao lado de Vincent Paronnaud).

Nas palavras da diretora, a obra se constrói menos como afirmação e mais como provocação. Longe de oferecer respostas conclusivas, o filme aposta na dúvida como motor reflexivo, convocando o espectador a pensar os impasses do presente e as possibilidades de futuro. E reside nas questões levantadas o grande mérito de Glória e Liberdade: estamos, de fato, resistindo enquanto nação? É possível reconstruir, a partir das ruínas, ou é necessário romper completamente e reinventar? Ainda há tempo de reescrever a história brasileira?
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