A Substância
Coralie Fargeat
EUA/Reino Unido, 2024. Drama/Terror, 2h20. Distribuição: Imagem Filmes
Com Demi Moore, Margaret Qualley, Dennis Quaid
A obsessão da sociedade com a beleza e a juventude atingiram níveis doentios e padrões inatingíveis com as redes sociais. E é esse estado de inquietação e paranoia que a diretora francesa Coralie Fargeat se inspira para criar A Substância, longa que se apodera com vigor no cinema extremo e absurdo para criar um conto bizarro sobre uma atriz que busca uma saída contra o sexismo de sua profissão.
Estrelado por Demi Moore em uma das melhores interpretações de sua carreira, A Substância se recusa em parecer sério e comedido, ainda que mire em questões complexas dos dias atuais, como a pressão estética que adoece mentes ao redor do globo e que ainda ressoa fortemente na mídia. Tudo no longa é exagerado e ridiculamente vigoroso, o que força no espectador um estado permanente de tensão e desconforto.
A trama foca em Elizabeth Sparkle (Moore), uma atriz na casa dos 50 anos vencedora de Oscar, hoje já distante de seu auge, que mantém um programa matinal de exercícios físicos, ao estilo Jane Fonda nos anos 1980. Ela é demitida da emissora depois que um executivo (Dennis Quaid) decide que ela é “velha demais” para o posto. Ao descobrir por acaso o motivo de sua demissão e desconcertada pelo fim repentino, acaba se envolvendo em um acidente de carro. É nesse momento, internada no hospital, que ela tem contato com um tratamento clandestino que promete uma “versão perfeita de si mesma”.
A partir deste ponto, o texto traz spoilers (seria praticamente impossível discutir questões importantes trazidas pelo longa, sem falar da trama).
O contato com a tal “substância” é altamente secreto e envolve uma série de riscos, que Elizabeth decide seguir sem muita reflexão. Começa então o show perturbador de body horror, que faz desse filme um novo marco no gênero. Ao injetar o líquido “ativador” do tratamento, o corpo de Elizabeth cria uma nova cópia dentro de si mesmo, que rompe de sua coluna vertebral tal qual um Alien. Trata-se de uma versão jovem, incrivelmente linda e sexy, um corpo idealizado, perfeito (interpretado por Margaret Qualey, também ótima).
Apesar de serem independentes, os dois corpos precisam coexistir em momentos alternados. A cada semana, a cópia precisa dar lugar ao corpo matriz, que por sua vez, fornece um líquido vital estabilizador para que este sobreviva.
A versão jovem, que se autointitula “Sue”, se candidata à vaga no programa de Elizabeth e conquista o posto de apresentadora, apesar de todas as limitações de dividir a existência com sua versão mais velha. E é aqui que os problemas começam. Seu novo show vira um hit instantâneo e ela se torna uma celebridade adorada nacionalmente, o que a faz passar um tempo maior do que o previsto no tratamento da substância. O problema é esse tempo extra de Sue consome a energia vital de sua matriz, que vai se deteriorando rumo a uma decrepitude monstruosa.
E fica o aviso: A Substância é um filme altamente investido no gore, o subgênero do terror que abusa da estética sangrenta e exagerada, com litros de sangue, vistosas eviscerações e todo tipo de nojeira. Mas seu body horror é uma capa sangrenta que esconde um subtexto sobre as pressões estéticas que o corpo feminino é submetido.
O filme fala sobre a violência desse olhar masculino, que impõe esses padrões e que acaba sendo normalizado pela sociedade. Demi Moore, ela própria uma atriz que sofreu com essa pressão estética e que passou por maus bocados em cirurgias malsucedidas de intervenções plásticas, interpreta alguém que nutre um ódio por si mesma baseada nessa premissa de que seu valor está intrinsecamente ligado a um ideário de juventude e beleza.
A cena em que Elizabeth se arruma para um raríssimo date é perturbadora. Ela está belíssima e sensual, mas sua insegurança e a imagem de Sue em sua mente a impedem de sair de casa. Brigando consigo mesma no espelho, ela entra em surto e acaba desistindo.
Interpretando quase todas as cenas sozinha, Demi Moore dá vida à personagem a partir de pequenos gestos, consciência corporal e expressões faciais, o que traz bastante nuances em um filme talhado na hipérbole.
A direção de Coralie Fargeat vai nessa toada de pouca sutileza, com o intuito de perturbar o espectador durante toda a projeção. Os temas que estão sendo discutidos estão embalados por essas imagens de horror, o que ajuda a reverberar essas questões sem parecer didático, ainda que o roteiro tenha tornado alguns aspectos um tanto óbvios demais. Os personagens masculinos são todos histriônicos, débeis, idiotizados. O mais grotesco deles, o executivo da emissora interpretado por Dennis Quaid, se chama Harvey, em uma clara alusão ao mais conhecido misógino da indústria.
Quase uma estreante em longas, Fargeat assume riscos com uma direção eletrizada, repleta de planos pouco usuais, uma câmera que parece nervosa, quase vertiginosa. Seus closes no corpo, seja para enaltecer a juventude de Sue, seja para evidenciar a decadência de Elizabeth, é desconfortável e evidencia o quanto nos acostumamos com esse olhar objetificante nas imagens que nos rodeiam. A fotografia de Benjamin Kracun (de Bela Vingança) embala essa estética brutal e opressora de uma Los Angeles de cores febris, com paisagens opulentas e quase nenhuma pessoa nas ruas.
Essa visão artística da diretora culmina em uma das cenas finais mais absurdas e catárticas no cinema recente, dignas de figurar ao lado de clássicos do cinema extremo, como A Mosca, de Cronenberg ou Carrie A Estranha, mas aqui com doses cavalares de sarcasmo. Ver essa cena em tela grande é daquelas experiências compartilhadas que só uma sala de cinema pode proporcionar.
A Substância é um filme que cumpre bem o objetivo de abrir discussões relevantes ao mesmo tempo em que desenvolve bem sua narrativa de terror grotesca. Sátira exagerada desses tempos atuais, é possível encontrar no longa um balaio de temas, que vão do absurdo dos padrões do corpo feminino à insidiosa cultura de celebridades, passando pela medicalização desenfreada, os cabeções de ozempic, harmonização facial, filtros de Instagram e muitos outros horrores.
Leia mais críticas:
- “Coringa: Delírio a Dois”: Todd Phillips cria musical acanhado que parece ter vergonha da própria proposta
- “Prisão nos Andes” escancara as regalias em penitenciária especial para militares da ditadura chilena
- “A Substância” faz cinema do absurdo para falar de etarismo e pressão estética
- “Robô Selvagem” anima a jornada de uma alma mecânica e reflete sobre o pertencimento
- “Golpe de Sorte em Paris”: Woody Allen revisita caminhos conhecidos em novo filme