Um estranho fenômeno vem acometendo pessoas – mais enfaticamente fãs – que vão a grandes shows de música pop: uma amnésia misturada a profunda melancolia nos dias seguintes ao espetáculo. Os primeiros indícios ocorreram durante a The Eras Tour, de Taylor Swift, quando fãs não conseguiam elaborar discursivamente o que tinham vivido, palavras pareciam não dar conta da experiência. A lembrança se esforçava para se localizar entre a memória e a ficção. O que tinha acontecido? O que foi “real”? As aspas precisam ser colocadas no real, uma vez que – de fato – estes fenômenos parecem embaralhar o acontecido com o sonhado, o isso-foi com o-que-foi? As imagens passam pelas retinas e ficam retidas apenas nas telas: nos celulares, nas TVs. A gente vai lá para lembrar (ou esquecer?) do que ocorreu.
Há uma semana, Lady Gaga apresentou seu show Mayhem on the Beach – que logo passou a ser nomeado de Gagacabana – de graça, na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, dentro do projeto Todo Mundo no Rio, ação de marketing da Prefeitura de criação de uma nova “data turística” para a cidade com a vinda de grandes shows internacionais para as areias da praia. O projeto “piloto” foi o show da cantora Madonna, a Celebration Tour, em 2024, resultado de uma ação do banco Itaú visando atrelar a marca à experiência dos espetáculos musicais.
Não precisa nem comentar o retumbante sucesso que foi: 1,6 milhões de pessoas assistiram ao show da Madonna – segundo a Riotur – com 1,98 milhões de menções à Celebration Tour no Rio nas redes sociais segundo dados da consultoria Timelens. Os números de Lady Gaga são ainda mais superlativos: 2,1 milhões de pessoas assistindo ao vivo, nas areias de Copacabana e 2,02 milhões de menções nas redes sociais. O que me chamou atenção nos dados da consultoria, coletados através de análise de posicionamento nas redes sociais digitais entre os dia 1º e 5 de maio, foi a avaliação dos dois shows (a partir de menções positivas ou negativas em comentários): 47% julgam negativamente a passagem da cantora Madonna e o seu espetáculo Celebration Tour, contra 39% que desgostaram tanto da passagem de Lady Gaga pelo Rio quanto do espetáculo Mayhem on the Beach.

Resolvi olhar para a desaprovação dos dois espetáculos e das duas artistas como uma espécie de conjunto de sintomas sobre a presença da música pop no cotidiano, nas redes e plataformas digitais. Nas nossas “bolhas” de amigos (na minha em especial), formada majoritariamente por pessoas LGBTQIAPN+, os relatos de encantamento, efusividade, empatia e epifania diante tanto da passagem de Madonna quanto de Lady Gaga se somaram a vídeos em que, imagens borradas captadas por celular, tentam captar os vultos das estrelas pelo telão ou pelo palco. A dimensão de epifania é um traço usual nas práticas de espectatorialidade dos shows pop sobretudo de cantoras, as divas pop. A aparição das estrelas, a dimensão da voz, das trocas de roupas, a posição de solenidade e decoro situam as divas pop como personas que mobilizam afetos maternais, acolhedores e femininos em sua grande maioria, para fãs LGBTs.
Resolvi olhar para a desaprovação porque talvez ela seja mais sintomática de elementos menos visíveis ou elaborados discursivamente. Madonna foi 8% mais desaprovada que Lady Gaga e acredito que alguns pontos podem ser destacados. A Celebration Tour, como grande parte da carreira de Madonna, é marcada por um conjunto de provocações que passam pela dimensão sexual – lembremos, entre outros, o buruçu que foi o lançamento do livro Sex, lançado em 1992, junto com o álbum Erotica, em que Madonna posava nua para ensaios fotográficos com alta voltagem sexual, expondo nudez, sadomasoquismo e ficção como partes indissociáveis do desejo.
O show de Madonna, exibido na Rede Globo, em horário nobre, trouxe referências a masturbação, orgia, aids e morte através do corpo de uma cantora de 65 anos em 2024 – algo que, reiteramos, ela sempre fez no palco. A desaprovação a Madonna parece derivar desse conjunto incômodo de fatores: o etarismo e o sexo. O pesquisador Felipe Trotta vem investigando de maneira sistemática por que certas músicas incomodam e também como é produtivo pensar a natureza deste incômodo. Tem um elemento que gostaria de acrescentar a esta conversa: o zeitgeist do incômodo. Ou o incômodo como traço do espírito do tempo.
Fico pensando que, nesta época de profundo pânico moral, com a religião ocupando um papel tão central nas tessitiras sociais, e tomando a dimensão cristã da sociedade brasileira, o quanto um espetáculo de Madonna, transmitido na TV aberta, com insinuações e jogos sexuais cênicos, incomoda por sua capacidade de varrer para a superfície um conjunto de imagens que rivalizam com a limpeza dos discursos morais. A alta taxa de rejeição à passagem de Lady Gaga pelo Rio (39%) também indica, em ordens semelhantes, a recusa a ver grupos, corpos e estéticas dissonantes de pessoas desviantes de gênero em seu direito de aparecer (para citar Judith Butler) na cidade e nas redes.
As recusas a Madonna e Lady Gaga também não são iguais sobretudo porque há um corte geracional entre as duas. Elas são estrelas pop de diferentes matrizes estéticas: Madonna é a pura racionalidade moderna, a ídola olimpiana, forte, obcecada com a perfeição, disciplinada; Lady Gaga, ao contrário, é a espiral pós-moderna, falha, adoece, chora em cena, quebra com o pacto maquínico do ídolo pop. São duas gerações distintas que se conectam no feminino mas apontam para diferentes imaginários de fãs: se Madonna era parte da geração saúde, malhação, vigor, Gaga é parte de um sentimento mais difuso, melancólico, oscilações de humor, retração.
As recusas a Madonna e Lady Gaga também não são iguais no corte geracional entre as duas. São estrelas pop de diferentes matrizes estéticas: Madonna é a pura racionalidade moderna, a ídola olimpiana, forte, obcecada com a perfeição, disciplinada; Lady Gaga, ao contrário, é a espiral pós-moderna, falha, adoece, chora em cena, quebra com o pacto maquínico do ídolo pop.
Thiago Soares
hackear o pop
No palco, os shows de Madonna e Lady Gaga são estruturalmente semelhantes. A divisão em blocos deriva de uma partitura músico-dramática dos espetáculos de vaudeville, do teatro musical popular estadunidense, que o historiador Robert C. Tall chama de “engrenagem narrativa de encenação da música”. As canções são atadas a outras por alianças temáticas ou sonoras, criando ambiências e semelhanças muitas vezes imprevistas. Esses elos entre as músicas se agrupam em blocos que indicam também unidades dramáticas – lembremos o início da Celebration Tour de Madonna em que ela recria a Nova York dos anos 1970 e 1980 e o primeiro bloco da Mayhem on the Beach com a ambientação que Lady Gaga faz de uma mansão assombrada.
Um argumento muito comum nos discursos de fãs e de “especialistas” nas redes sociais é acusar Lady Gaga de “copiar” a estrutura de espetáculo de Madonna – o que, a meu ver, parece precipitado e injusto. As duas bebem na fonte de uma cultura de espetáculo que remete aos Estados Unidos do século 19 e incorporam de formas distintas – aliando a plástica desta estrutura a seus temas. Madonna coloca dados biográficos, sexualiza, ficcionaliza sua própria vida; Lady Gaga cria novas camadas de monstruosidade, brinca com seu universo de personas, parece se divertir com um mundo assustado.
Madonna aponta para os problemas do mundo, está nos alertando para a Aids, as guerras; Lady Gaga nos convida a enfrentar a psiquê desse mundo em crise, os transtornos, os espectros, a depressão. Cada uma, a seu modo, tenta trazer respostas de mulheres cis e brancas, a um mundo plural, complexo e diverso.
Lady Gaga, como uma estrela do mundo digital, do YouTube, das plataformas, também é uma criadora artística algorítmica. Seu espetáculo é tradução dessa época porque traz, no DNA, a prática de hackeamento performático. Desde o lançamento do álbum Mayhem (2025) que Gaga vem sendo elogiada pela crítica por incorporar referências a David Bowie, Prince, Michael Jackson, Madonna e Taylor Swift com impressionante destreza, camuflando aspectos sonoros em sua assinatura estilística. Só a título de exemplo, a canção “How Bad Do U Want Me”, apontada como uma espécie de versão Gaga de canções de Talor Swift, despertou interesse da legião de fãs da ex-estrela country (os Swifties) e já é a terceira mais ouvida do disco nas plataformas digitais.
Madonna aponta para os problemas do mundo, está nos alertando para a Aids, as guerras; Lady Gaga nos convida a enfrentar a psiquê desse mundo em crise, os transtornos, os espectros, a depressão. Cada uma, a seu modo, tenta trazer respostas de mulheres cis e brancas, a um mundo plural, complexo e diverso.
Thiago Soares
No show Mayhem on the Beach, o hackeamento é ainda mais interessante. Lady Gaga parece se infiltrar no sistema do pop e, como se fosse ela mesma um algoritmo, vai se conectando ao modo de dançar de Michael Jackson, a um gesto que parece o de Prince, a uma roupa que parece usada por Taylor Swift. Tudo pela ordem da semelhança, da especulação e da incerteza. Ao final, entretanto, tem algo ali que é pura Lady Gaga: a destreza cênica da atriz, a multi-instrumentista e os recursos cênicos da voz que o pesquisador Daniel de Andrade Lima já nomeou como uma “autenticidade virtuosa” da estrela que se irmana de padrões hegemônicos da música.
Embora o terreno minado das redes sociais queira insistir em criar oposições, atritos e oposições entre artistas pop, talvez o papel da pesquisa acadêmica seja exatamente o contrário. Estuda-se música pop, cultura de espetáculos, Madonna, Lady Gaga e afins para mostrar que há muito que se opõe, mas há ainda mais que se aproxima. Olhar para a história do pop, o legado de uma artista não como algo imutável, estático e estanque; mas sobretudo como partituras que serão encenadas, reencenadas, descontruídas e reconstruídas. A música pop deve apostar na beleza na repetição.
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