Um papo com Thales Junqueira: “A direção de arte só cumpre seu papel quando é capaz de narrar”

Explorando o papel do diretor de arte no cinema: desafios, inovações e a importância dos elementos visuais

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Foto: Divulgação.

O que faz um diretor de arte? Este profissional é responsável por transformar o roteiro em um ambiente visual que seja coerente e impactante. Desde a seleção de cenários até a coordenação dos elementos visuais que auxiliam na narrativa, desempenha um papel crucial na realização de um filme. Para explorar esta função em profundidade, conversamos com o diretor de arte Thales Junqueira, que é responsável pelo aguardado O Agente Secreto, de Kléber Mendonça Filho.

Thales nasceu em Belo Horizonte em 1987 e reside no Recife. Sua trajetória no cinema começou em 2009 com a direção de arte do curta-metragem Mens Sana In Corpore Sano, dirigido por Juliano Dornelles. Em 2014, Thales Junqueira fez sua estreia em longas-metragens com Que Horas Ela Volta?, dirigido por Anna Muylaert em parceria com Marcos Pedroso. O filme foi representado pelo Brasil na disputa pela indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e recebeu prêmios nos festivais de Sundance e Berlim. A parceria com Pedroso continuou com Três Verões, de Sandra Kogut, que teve sua estreia mundial no Festival de Toronto 2019.

A colaboração com Kleber Mendonça Filho também foi notável, incluindo a direção de arte de Aquarius, que estreou na Seleção Oficial do Festival de Cannes em 2016, e Bacurau, que recebeu o Prêmio do Júri na Seleção Oficial do Festival de Cannes 2019. Além disso, Thales trabalhou com Gabriel Mascaro em Divino Amor, que estreou no Festival de Sundance 2019. Entre outros projetos, Thales também contribuiu para Sol Alegria, de Tavinho Teixeira, Rio Doce, de Fellipe Fernandes, e Doutor Gama, de Jefferson De.

Em conversa com a Revista O Grito!, Thales Junqueira discute o papel fundamental da direção de arte, especialmente à luz do impacto visual de seu trabalho mais recente em O Agente Secreto. Este projeto, ambientado no Recife dos anos 1970 e dirigido por Kleber Mendonça Filho, tem atraído atenção pela sua representação detalhada das locações da época.

Confira a entrevista na íntegra.

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Sem Coração, longa com direção de arte assinada por Thales Junqueira. (Foto: Divulgação.)

Como foi o início da sua carreira na direção de arte e o que despertou seu interesse por esse campo dentro do cinema? 

Eu nunca trabalhei com outra coisa que não fosse cinema e na área de direção de arte. Minha formação é em jornalismo e ciências sociais. Na época em que fiz faculdade, ainda não existia o curso de cinema e eu tampouco pensava em trabalhar com cinema. Foi por influência de um grande amigo, que é um realizador pernambucano chamado Felipe Fernandes, alguém que estudou comigo na escola e que desde aquela época já queria fazer cinema, que eu acabei entrando nessa área. 

Eu me lembro bem de um dia em que ele era estagiário de direção em uma série que estava sendo rodada no Recife. No primeiro dia de filmagem, ele me ligou maravilhado com tudo aquilo, o primeiro contato dele com o set. E ele disse: “Eu acho que direção de arte é a sua cara, você tem que fazer isso”. E aí, eu atendi ao chamado desse grande amigo. Ele estava certo, e é isso que venho fazendo desde então. 

Quando ele me disse isso, foi na mesma época em que soube que o Gabriel Mascaro estava começando a produção de um filme chamado Avenida Brasília Formosa. Conheci a Marília Assis, que era produtora do filme, e falei com ela que gostaria de trabalhar no projeto. Gabriel me chamou para uma conversa e perguntou o que eu gostaria de fazer. Eu disse: “Direção de arte”. Sem muita ideia do que exatamente significava fazer direção de arte. E então ele falou: “Olha, é um documentário que parte de uma estrutura de ficção. Temos um roteiro, mas precisamos trabalhar de uma maneira quase documental. Basicamente, o que eu queria saber é se você topa cair em campo para encontrar esses personagens que estão no roteiro”.

Foi assim que eu comecei, em uma mistura de casting, produção de elenco, porque eram pessoas reais, personagens reais, mas que estavam interpretando a si mesmas. E, à medida que eu ia encontrando esses personagens e eles se integravam ao filme, eu também estava encontrando os espaços onde eles viviam e sugerindo os locais onde eles se encontravam. Então, Gabriel me deu o crédito de direção de arte. Não foi exatamente um trabalho convencional de direção de arte, mas acho que foi um ponto de partida muito interessante e rico.

Em filmes como Bacurau e Divino Amor, o visual é quase um personagem por si só. Como você enxerga o papel da direção de arte na construção da narrativa cinematográfica? 

A direção de arte é responsável por transfigurar os dados da dramaturgia, ou seja, transformar o texto em discurso estético. É a materialização do texto. Ela acaba expressando muita coisa que não está dita, que não está no texto. Enriquece a história, porque, através dela, você capta pistas sobre os personagens – como eles vivem, quem eles são. É uma maneira, digamos, silenciosa, mas que complementa e tridimensionaliza o texto. 

A direção de arte está necessariamente a serviço e é um complemento da dramaturgia.

Acho que a direção de arte só funciona e só cumpre seu papel quando é capaz de narrar, de construir personagens, de colaborar com os atores e atrizes, e de tornar a história ainda mais interessante a partir dos recursos visuais.

Você já trabalhou em filmes com cenários urbanos e rurais, como Aquarius e Cangaço Novo. Como você adapta seu processo criativo ao contexto e ambiente de cada produção? 

Um diretor de arte é quase um especialista em generalidades. Depende muito das circunstâncias do projeto, da dimensão, do orçamento disponível, de onde ele está sendo realizado e de quem são os diretores e a equipe. É um trabalho com muitas variáveis, embora, claro, exista um certo modo de fazer. Pelo menos eu encontrei um método que é atravessado por mil variações de projeto para projeto, mas que segue etapas similares de modo geral. 

No fim das contas, tudo é muito diferente de um projeto para o outro, mas, ao mesmo tempo, é muito parecido. Mesmo quando você faz um filme inteiramente em estúdio, como fiz, por exemplo, no filme de um diretor português chamado Miguel Gomes, que foi rodado inteiramente em estúdio, sem nenhuma locação pré-existente, o processo é similar a quando você faz um filme todo em locação. No fim, opera de maneira parecida. 

Seja em locações, em estúdio, num contexto urbano ou rural, isolado ou no meio de uma cidade, o que você precisa é materializar essa história. Pensar em como ela pode ser visualmente atrativa, instigante e, sobretudo, como ela pode enriquecer e complexificar a dramaturgia e os personagens. Então, embora cada projeto seja muito diferente, a raiz do trabalho é sempre a mesma.

Você já colaborou com nomes como Kleber Mendonça Filho e Anna Muylaert. Como é o diálogo entre o diretor de arte e o diretor do filme durante o processo de criação visual? 

Tudo começa com a leitura do texto. Sempre que leio um roteiro pela primeira vez, não me preocupo em como ele será realizado. Por mais que pareça desafiador, complexo, difícil ou caro, eu não me prendo a isso. Leio como se estivesse lendo um romance, um conto, uma novela. Inevitavelmente, assim como acontece com qualquer leitor, muitas imagens já vêm à mente. 

Eu gosto de fazer essa primeira leitura antes de conversar com o diretor, embora, muitas vezes, eu tenha acompanhado os projetos desde o nascimento da ideia. Às vezes, levamos anos discutindo o projeto, e o diretor me manda trechos do roteiro para eu ler e dar um retorno. Mas, quando o texto está realmente pronto e a produção do filme vai começar, eu prefiro fazer essa leitura inicial sozinho. 

Depois disso, claro, é hora de sentar com o diretor ou diretora e alinhar uma visão comum – entender como eu vejo o projeto e quais são as expectativas da direção. Discutimos qual abordagem visual será adotada: uma coisa mais naturalista ou algo diferente? Quando você lê o texto e já conhece o diretor, você começa a entender um pouco da linguagem, para onde o filme está indo, de modo geral. 

Por exemplo, O Agente Secreto é um projeto que Kleber Mendonça tem trabalhado há bastante tempo. O roteiro ficou parado por um tempo, enquanto ele voltou a trabalhar em Retratos Fantasmas, que, de certa forma, é uma grande pesquisa para O Agente Secreto. Eu já conhecia o projeto, pois colaboro com Kleber há bastante tempo. Quando o roteiro ficou pronto, ele me enviou, e nós trocamos algumas ideias. Na época, eu estava em Roma, trabalhando no filme do Miguel Gomes, e trocamos muitas mensagens. Eu até escrevi um texto sobre como o roteiro me tocou e sobre as sensações que ele provocou em mim. 

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Set de “Agente Secreto”. (Foto: Victor Jucá/Divulgação.)

No início, tudo começa de uma maneira mais geral. Você não lê um roteiro e já vai discutir locações, cortes ou estúdios. Essas coisas são muito importantes, claro, mas vão surgindo no decorrer das conversas. No começo, falamos sobre pessoas, sobre histórias, sobre personagens. De modo geral, é assim que funciona para mim nessas primeiras conversas com a direção. 

A partir daí, começa todo o trabalho de orientação da pesquisa, de busca por locações e das soluções que o filme e o projeto demandam.

No filme O Agente Secreto, você trabalhou com um cenário dos anos 1970. Embora você não possa falar muito sobre o filme, como é recriar uma época passada e garantir que o cenário seja autêntico, mas ainda assim acessível ao público contemporâneo? 

Uma coisa interessante que posso compartilhar é que, quando li o roteiro e comecei a pensar na produção e na materialização daquele mundo, fiquei preocupado. O Recife, assim como muitas outras cidades brasileiras, latinas e do Sul global, passou por um processo de modernização tardio e caótico, o que fez com que grande parte de sua arquitetura e história se perdesse. Isso me levou a acreditar que seria difícil encontrar locações adequadas para filmar. 

Sendo mineiro, mas morando no Recife desde criança, me considero pernambucano. Tenho uma grande intimidade com a cidade, gosto muito dela e a conheço bem. Mesmo assim, foi preciso que esse filme entrasse na minha vida para que eu, junto com a pesquisa de locação e com o Kleber, descobrisse que ainda existem muitos lugares no Recife que foram esquecidos pela especulação imobiliária, pela modernização e pela arrogância da novidade que vai colocando tudo abaixo. Para minha surpresa, descobrimos locais que me faziam perguntar: “Como isso sobreviveu? Como isso ainda está aqui?”. Isso parecia incoerente com a maneira como tratamos nossas cidades, onde tudo é demolido e reconstruído, ganhando uma nova configuração. 

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Set de “Agente Secreto”. (Foto: Victor Jucá/Divulgação.)

O filme se passa quase inteiramente no centro do Recife, uma área que foi abandonada pela elite financeira desde o início da segunda metade do século XX. Esse processo se acelerou ao longo dos anos, e hoje o centro está infelizmente muito degradado e desprestigiado. No entanto, foi surpreendente encontrar, no coração do Recife, uma memória viva da cidade, e, em alguns casos, até bem preservada. 

Embora não houvesse locações prontas, ou seja, não chegamos simplesmente e filmamos, o que é natural, já que não estamos mais nos anos 70, encontramos lugares onde não foi necessário um esforço monumental para transformá-los em cenários adequados para aquela época. As cidades se transformam, o mundo muda, mas tivemos a sorte de descobrir espaços que mantinham a essência do Recife de 1977.

Com filmes tão distintos no currículo, como Que Horas Ela Volta? e Bacurau, como você equilibra seu estilo pessoal com a necessidade de se adaptar às diferentes visões dos diretores? 

Essa é uma pergunta interessante, porque quando estou trabalhando na direção de arte, estou atendendo a um texto. Há uma direção e uma linguagem das quais faço parte e nas quais também tenho uma certa autoria, mas não é um trabalho individual. É, sem dúvida, um trabalho extremamente coletivo. Encontrar um estilo próprio, tendo que trabalhar com tantos diretores diferentes, com abordagens e linguagens distintas, nunca foi algo que eu busquei ou persegui ativamente. 

Curiosamente, já ouvi comentários de pessoas dizendo “Esse projeto realmente tem a sua cara, essa direção de arte tem a ver com você”. Para mim, é difícil entender o que isso significa exatamente. Já trabalhei em filmes com estilos e abordagens muito variados, mas sempre tive um grande apreço pelo naturalismo. Algo que me dá muito prazer é proporcionar um certo reconhecimento ao espectador, quando ele assiste a um filme e se identifica com o que vê – seja com um personagem, uma casa, ou até com a forma como alguém se veste. Isso gera uma conexão imediata com a história e os personagens. 

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Processo de Prisioneiro da Liberdade. (Foto: Divulgação.)
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Processo de Prisioneiro da Liberdade. (Foto: Divulgação.)

No entanto, com o tempo, aprendi a equilibrar melhor esse desejo de representar fielmente o mundo real com a liberdade criativa que o cinema oferece. No início, eu tinha quase uma obsessão por reproduzir de forma fiel algo que considerava verdadeiro e autêntico. Mas, aos poucos, comecei a me encorajar a criar algo mais cinematográfico, mais expressivo. Às vezes, é bom se distanciar um pouco da realidade e criar algo que tenha esse equilíbrio – algo que o público possa reconhecer, mas que também traga um toque de fantasia ou de “loucura”, que seja marcante. Acho que a ideia é fazer com que as imagens do filme fiquem na mente do espectador, que ele não consiga esquecê-las.

Como você vê a evolução do mercado cinematográfico no Nordeste e quais são suas expectativas para o futuro da produção local, tanto em termos de arte quanto de reconhecimento? 

O cinema pernambucano, dentro do cinema brasileiro, meio que se tornou uma “grife”. Isso foi muito importante em determinado momento, pois trouxe um forte sentido de coletividade. Porém, o cinema pernambucano já é bastante diverso há algum tempo, e é difícil colocar tudo isso sob um único guarda-chuva, mesmo regionalmente. Até dentro do próprio cinema pernambucano, muitos filmes nem são feitos aqui. Por exemplo, o Marcelo Gomes fez seu último filme no Rio de Janeiro e na Itália, mas ele continua sendo um diretor pernambucano. Acho que, se o Kleber Mendonça Filho fizer um filme fora do país, até em Hollywood, esse filme ainda será pernambucano, porque há uma crença forte na autoria. 

Eu costumo gostar dos filmes pernambucanos. Até quando eles são péssimos, eu gosto.

Passamos por momentos difíceis no Brasil de maneira geral, e agora a produção está sendo retomada, enfrentando desafios imensos, especialmente com o impacto dos streamings. Essas plataformas estão fazendo muito dinheiro aqui, e precisam, sim, falar sobre nós, sobre o Brasil. O cinema como um todo está em uma encruzilhada, e a pandemia só evidenciou isso. Cada vez menos pessoas vão ao cinema, o que é triste, pois ver um filme na sala de cinema é uma experiência completamente diferente de assisti-lo em uma tela de celular ou computador. Eu esqueço rapidamente dos filmes que vejo em telas pequenas, mas os que vejo no cinema permanecem comigo por mais tempo. A tela grande, a imagem mais forte, o fato de haver outras pessoas na sala – tudo isso faz com que a experiência seja mais marcante. Você é impactado também pela forma como quem está ao seu redor reage à história. 

Este é um momento muito desafiador, não só para o cinema brasileiro, mas para o mundo todo. Quando olhamos para a bilheteria do cinema brasileiro nos últimos anos, vemos uma queda vertiginosa. Números que hoje parecem bons seriam considerados fracassos há 10 anos. O cinema pernambucano, assim como o brasileiro e o mundial, enfrenta o desafio de trazer as pessoas de volta às salas de cinema. 

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