Opinião: Além do julgamento das Pussy Riot

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Foto de manifestação no ano passado

INDO ALÉM DO JULGAMENTO DAS PUSSY RIOT
A promoção dos valores tradicionais e a ameaça à universalidade dos direitos humanos

Por Juliana Cesar
Colaboração para a Revista O Grito!

Recentemente falou-se bastante sobre o caso Pussy Riot. Antes relativamente desconhecido, o grupo recebeu uma enorme projeção e apoio por todo o mundo, de pessoas anônimas a mega-celebridades, em função da julgamento de três de suas integrantes, presas após realizarem uma polêmica manifestação na Igreja do Cristo Salvador, em Moscou. Durante a cobertura do julgamento foi bastante abordada a crescente influência e colaboração da igreja ortodoxa com o poder estatal, que em um par de décadas passou de “ópio do povo” a braço direito do governo.

A despeito de possíveis motivações políticas, as acusações contra as integrantes do Pussy Riot, assim como a sentença que as condenou, embasavam-se na proteção da cultura e da religião. O promotor federal responsável pelo caso, Alexei Nikiforov, chegou a alegar que a manifestação realizada não teria sido de caráter político, mas fruto de ódio contra a Igreja Ortodoxa Russa, e que as ativistas teriam violado as tradições do país, pelo que mereciam ser isoladas da sociedade. Yelena Pavlova, advogada de várias das nove pessoas que se disseram insultadas pela performance, afirmou que “o feminismo é um pecado mortal” para a Igreja.

Pecados não fazem parte, ainda, do Código Penal Russo, mas foram protagonistas neste julgamento, que foi muito mais uma afirmação simbólica do poder religioso, endossado pelo estado, do que sobre o conteúdo dos direitos civis e da liberdade de expressão.

Se isto já é lúgubre o suficiente dentro do contexto político dos países do antigo bloco soviético, é ainda mais preocupante constatar que a ação da igreja e do poder secular russo para sobrepor os valores religiosos e conservadores ao direitos civis e sociais tem acontecido sistematicamente também na esfera internacional.

Até pouco tempo os valores tradicionais legitimavam a segregação racial, tratando pessoas negras como mercadoria, proibindo casamentos inter-raciais e negando direitos às mulheres

A Rússia tem capitaneado uma resolução no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (CDH) que promove os “valores tradicionais” como base para os direitos humanos. A proposta, apoiada por 28 países, entre os quais a Arábia Saudita, o Bahrein e a China (não exatamente os melhores exemplos de campeões dos direitos humanos, mais um indicativo a ser registrado), foi apresentada pela primeira vez em 2009, na 12ª Sessão do CDH, e pedia a “compreensão dos valores tradicionais” e a proteção dos direitos humanos através da proteção das tradições e da cultura. Ela, contudo, não definia o que seriam estes “valores tradicionais”, o que gerou um alerta imediato às organizações progressistas de direitos humanos, em especial às ligadas às temáticas de gênero e orientação sexual e identidade de gênero.

O texto proposto tomava os “valores tradicionais”, sem ressalva ou exceção, como propulsores dos direitos humanos. Não havia qualquer menção à frequente invocação desses mesmos valores como justificativa para violações dos direitos humanos, como a violência familiar, o estupro conjugal, o casamento forçado, os crimes de honra, a mutilação genital feminina, segregações sociais ou raciais, e diversas outras modalidades de opressão das mulheres ou minorias sociais sob o manto de práticas culturais e tradicionais. É bom lembrar que até pouco tempo os valores tradicionais legitimavam a segregação racial e a autonomia das mulheres, tratando pessoas negras como mercadoria, proibindo casamentos inter-raciais e negando às mulheres direitos como o voto, a educação e o trabalho.

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A Rússia de Putin foi à ONU tentar promover “valores tradicionais” como base dos Direitos Humanos (Foto via HyperVocal.com)

Além disso, o texto incluía o apoio ao modelo tradicional de família, priorizando os direitos da família sobre os direitos individuais, e a coibição a comportamentos considerados “moralmente repreensíveis”. Não é coincidência haver um influente movimento conservador internacional, em grande parte financiado por organizações religiosas, que põe o modelo tradicional de família, e não indivíduos, como base da sociedade. Em uma tentativa de conciliação no CDH, sugeriu-se incluir na resolução um parágrafo que reafirmasse que “nenhum Estado tem o direito de invocar os valores tradicionais para combater, limitar ou evitar a sua obrigação de promover e proteger os direitos humanos e liberdades fundamentais”, mas a Rússia e demais apoiadores da resolução se recusaram a aceitar esta proposta.

Assim, aquela sessão do CDH acabou por emitir uma resolução (Resolução 16/3, de março de 2011), que encarregou seu Comitê Consultivo de “preparar um estudo sobre como uma melhor compreensão e apreciação dos valores tradicionais de dignidade, liberdade e responsabilidade podem contribuir para a promoção e proteção dos direitos humanos “.

Uma primeira versão do estudo foi apresentada na 8ª Sessão do Comitê Consultivo, em fevereiro de 2012. Extremamente reacionário, o texto sugeria, entre outras coisas:

– subordinação dos direitos humanos aos valores tradicionais: “todos os acordos internacionais de direitos humanos (…) devem se basear, e não contradizer, os valores tradicionais da humanidade. Se este não for o caso, não poderão ser considerados válidos”;
– dependência do cumprimento dos tratados, convenções e outros documentos internacionais à disposição dos Estados-Membros;
– condicionamento do reconhecimento dos direitos humanos ao “comportamento responsável” dos indivíduos;
– posicionamento da família como base da sociedade e transmissora dos valores morais, sem, contudo, reconhecer a existência de diversas formas de família ou que as famílias também podem ser espaços de abuso e violência;
– visão dos valores tradicionais como uniformes e inerentemente positivos, não reconhecendo há uma pluralidade de interpretações do que é tradicional pelas sociedades, e desconsiderando a existência de valores tradicionais nocivos: “the concept of ‘values’ has an especially positive connotation”;
– ausência da perspectiva de gênero ou do uso de um método de análise equitativo e não discriminatório, como havia sido requerido do estudo.

A forte reação negativa de vários Estados-Membros, organizações do sistema ONU e organizações não-governamentais (Uma declaração subscrita por 100 organizações não-governamentais, formalmente submetida ao Comitê Consultivo, listou as dez principais preocupações da sociedade civil sobre a versão preliminar do estudo) levou a uma revisão do estudo, apresentado na 9ª Sessão do Comitê Consultivo, em agosto de 2012. O texto foi aprimorado em diversos pontos, passando a reconhecer também os efeitos negativos dos valores tradicionais. Por outro lado, esta segunda versão do documento manteve os temas da “responsabilidade individual” e do “comportamento responsável”. Dada a impossibilidade de conciliar as opiniões sobre o estudo, foi deliberado que a sua versão final só será apresentada na 22ª Sessão do CDH, em março de 2013.

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As três integrantes das Pussy Riot foram condenadas a dois anos de prisão (Foto via PussyRiot.org)

A Rússia, no entanto, apresentará uma nova proposta de resolução sobre a relação entre os valores tradicionais e direitos humanos universais na 21a Sessão do CDH, que está acontecendo neste mês em Genebra. O texto desta nova proposta ainda não foi divulgado, mas já preocupa por não haver motivo para acreditar que ele seja radicalmente diferente do anterior. Essa atitude também representa um completo desprezo pelo procedimento estabelecido pelo CDH, que acordou aguardar a conclusão do estudo sobre valores tradicionais, no inicio do ano que vem, antes de deliberar. Sabendo que a versão final do estudo não sairá mais ao seu contento, a Rússia decidiu atropelar o processo.

Este é apenas um exemplo da tendência de minar o direito internacional dos direitos humanos através de aprovação de documentos que desconstruam os avanços já conquistados neste campo. Enfrentamos hoje um momento em que direitos humanos e seu caráter universal, indivisível, interdependente e plenamente exigível não são mais aceitos como dados nas mesas de negociação.

Mais do que uma versão requentada do velho debate universalismo versus relativismo, esta é uma materialização da onda conservadora controlista que assola países em todo o mundo e, por conseqüência, a esfera internacional. Há indícios de que aí também se faz presente uma engenhosa e cruel estratégia de ganho de poder de barganha através da articulação bloco de países estratégicos em contraponto à chamada “hegemonia ocidental”. Mas isto já é assunto para outra conversa…

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Juliana Cesar, assessora de Programas da ONG Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero, é uma advogada feminista dedicada aos direitos humanos e direitos das mulheres, em especial à promoção e defesa dos direitos sexuais e reprodutivos e de uma vida sem violência contra as mulheres