Odile e os Crocodilos
Chantal Montellier
Comix Zone, 80 páginas, R$58,38
Tradução de Fernando Paz
Lançada originalmente entre 1983 e 1984 na histórica revista francesa Métal Hurlant, a hq Odile e os Crocodilos, de Chantal Montellier, chega ao público brasileiro em uma edição interessante (e contextualizada) da Comix Zone. A obra impõe sua potência política e estética mesmo quarenta anos após sua publicação original. E que ótimo termos mais um trabalho de Chantal disponível aos leitores brasileiros. Trata-se de uma narrativa incômoda, de densidade emocional e crítica contundente, que tensiona as fronteiras entre arte e denúncia, ficção e realidade, quadrinhos e literatura de intervenção.
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A trama acompanha Odile B., uma atriz envolvida com produções de teatro feminista, que é brutalmente atacada no estacionamento de um shopping center. A violência sexual que ela sofre, longe de ser um mero evento catalisador da trama, é o ponto de partida para um mergulho sombrio no fracasso das instituições que deveriam acolher e proteger.
Submetida a um julgamento perverso, no qual é tratada como cúmplice de seu próprio estupro, Odile se depara com a indiferença, a hostilidade e o escárnio das estruturas sociais. A partir desse momento, e diante da completa omissão da justiça, ela decide agir por conta própria.


A narrativa que se desdobra é, em muitos aspectos, uma anti-fábula. Ao contrário das histórias tradicionais em que a justiça é restaurada e os agressores punidos por vias institucionais, Chantal Montellier opta por um caminho radical. Odile transforma-se em uma figura que transita entre o real e o simbólico, entre o corpo violado e o corpo vingador. Ela assume o papel de um “anjo exterminador”, caçando homens que representam o sistema de dominação patriarcal.
Cada morte que executa é menos um ato de justiça e mais uma espécie de exorcismo, um grito silencioso contra uma sociedade que naturaliza a violência contra as mulheres.
Visualmente, Odile e os Crocodilos é uma obra que impressiona por sua sobriedade gráfica. Os traços precisos e angulosos, assim como o uso de cores esmaecidas e tons metálicos, conferem à narrativa um aspecto opressivo e distópico. O espaço urbano, dominado por shopping centers, vias expressas e figuras impessoais, é construído como um cenário hostil, desprovido de calor humano. A cidade é um labirinto de concreto onde a violência é banalizada e a empatia é um recurso escasso.
A opção pelo relato em primeira pessoa, com a própria Odile conduzindo o leitor por sua experiência traumática e sua transformação subsequente, confere à obra uma dimensão confessional que a aproxima do testemunho. É como se Montellier, por meio da personagem, ampliasse a voz de uma multidão de mulheres silenciadas pela violência sistêmica. Contudo, o discurso que emerge não é pacificado, tampouco conciliador.
A autora se recusa a oferecer qualquer possibilidade de redenção para os agressores, e tampouco para a sociedade que os protege. Nesse sentido, Odile e os Crocodilos é uma crítica devastadora à cultura do estupro, ao judiciário patriarcal e à lógica neoliberal que reduz os corpos a mercadorias descartáveis.

Chantal Montellier construiu ao longo de sua carreira uma obra marcada pelo engajamento político, pela sofisticação narrativa e pelo uso do desenho como linguagem de confronto. Em Odile e os Crocodilos, ela tensiona as estruturas da narrativa gráfica, recusando-se a edulcorar a violência ou a propor soluções fáceis. A HQ é, nesse sentido, uma obra de ruptura: recusa o didatismo e a moral da reparação, insistindo na complexidade do trauma e na impossibilidade de retorno à normalidade após a barbárie.
Em um país como o Brasil, onde os índices de violência de gênero permanecem alarmantes e a revitimização é parte do cotidiano das mulheres que denunciam, Odile e os Crocodilos adquire um caráter quase urgente. É uma leitura desconfortável, por vezes insuportável, mas absolutamente necessária.
O que se impõe não é uma mensagem de esperança ou uma celebração da justiça feita com as próprias mãos, mas uma constatação amarga: em um mundo onde os “crocodilos” nadam à vontade, resta às Odiles a difícil tarefa de não se afogar.
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