Garota Sequencial: Leitores machistas e homofóbicos, parem de ler HQs

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Foto: Divulgação/Valiant.
Foto: Divulgação/Valiant.
Foto: Divulgação/Valiant.

EI, HOMOFÓBICO E MACHISTA, PARE DE LER HQS
Autores como Brian Michael Bendis e Marcelo Cassaro se posicionam contra leitores intolerantes

Por Dandara Palankof

Machismo no mundo das histórias em quadrinhos não é novidade pra ninguém. Qualquer leitor de gibi minimamente sensato sabe que essa mídia, tal qual todas as outras, tem sua porção mainstream dominada por clichês e representações do ideário feminino. Na real, acabam servindo apenas à fantasias onanistas do público masculino, afastando qualquer possibilidade de que um maior número de leitoras passe a se interessar pelo universo dos super-heróis – que ainda é uma grande porta de entrada para a leitura de HQs.

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Tratei do tema justamente em minha primeira coluna nesse espaço. Em compensação, dois fatos bastante relevantes se deram no ano passado, durante o Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte(FIQ), e acabaram passando batido por essa coluna, que se encontrava em recesso.

O primeiro foi um quadrinista brasileiro (em princípio, não identificado, mas cuja identidade circulou à boca pequena na internet), que simplesmente fotografou partes íntimas de algumas das frequentadoras do evento e postou as imagens no Instagram, acompanhadas de comentários de baixo calão; após a revolta que se seguiu, as imagens foram excluídas e a organização optou por botar panos quentes e não se envolver diretamente – posição compreensível, porém condenável.

A segunda foi o bullying virtual que sofreu a mineira Natália Paixão: para homenagear o quadrinista George Pérez, convidado maior do FIQ 2013, ela interpretou o cosplay de Estelar, uma de suas personagens mais famosas. A fantasia ficou irretocável (http://www.pinterest.com/pin/74590937552209063/). Mas houve quem só visse que Paixão não atende ao modelo físico imposto pela indústria cultural – sim, sabemos, do qual a própria Estelar é um exemplo. A diferença é que Pérez, provavelmente ciente das desigualdades existentes na indústria para a qual trabalha, derramou-se em elogios a Natália – e quem, em sã consciência, não o faria?

Estelar no FIQ: cosplay foi alvo de machismo (Foto: Reprodução/Natália Paixão/Facebook)
Estelar no FIQ: cosplay foi alvo de machismo (Foto: Reprodução/Natália Paixão/Facebook)

Na época, o fato gerou um debate em um grupo do qual participo no Facebook, chamado Não Leio, Só Vejo as Figuras (ironia que alguns novos integrantes, hilariamente, parecem não notar; o grupo é aberto, chega lá!). Entre os debatedores, esta que vos escreve, outros integrantes do grupo que têm por hábito questionamentos envolvendo quadrinhos e relações sociais, a própria Natália e também Mary Cagnin, autora do mangá Vidas Imperfeitas, publicado no ano passado pela HQM Editora (da qual também faço parte). A conversa sobre o sexismo no mundo dos quadrinhos durou quase três horas e os pacientes podem conferi-la aqui.

Todos esses fatos representam uma condição que vem desde o começo dessa indústria – algo que a professora Selma Regina Nunes de Oliveira explicitou em seu livro Mulher ao Quadrado – As Representações Femininas nos Quadrinhos Norte-americanos: Permanências e Ressonâncias, 1895-1990. Publicado pela Editora da UnB e resultado de sua pesquisa de doutorado, o livro condensa os diversos retratos de uma indústria na qual, como em tantas outras, a mulher mais uma vez representa a dualidade “puta perigosa x donzela em perigo” (em corpos esculturais), dificilmente sendo as protagonistas de suas histórias.

X-Men na fase Marvel Now tem uma equipe de mutantes formada só por mulheres (Foto: Reprodução/Marvel)
X-Men na fase Marvel Now tem uma equipe de mutantes formada só por mulheres (Foto: Reprodução/Marvel)

Apesar disso, vez por outra recebemos sinais de que essa realidade não encontra ressonância em todos os profissionais da grande indústria. Em episódio de relativamente pouca repercussão na mídia especializada, o roteirista Brian Michael Bendis – responsável por grandes sucessos da Marvel nos últimos 15 anos e atualmente à frente do título Novíssimos X-Men – recebeu uma interessante mensagem em seu Tumblr; a missiva do leitor, anônimo, resume bem o comportamento padrão do homem leitor de HQs de super-heróis:

“Eu entendo que vocês têm tem que fazer os quadrinhos amigáveis para as meninas, mas vocês não estão preocupado em perder sua principal audiência, que é masculina? Nas publicações dos mutantes vocês tem focado mais em mulheres como Jean e Kitty, enquanto o Ciclope foi o astro dos gibis dos X-Men por anos. O que garante a estas personagens mais páginas do que a ele? Jean e Kitty são personagens secundários. Vocês ficam ouvindo muito os mimimis das mulheres. Elas estão causando todo esse drama no mundo dos quadrinhos.”

A resposta de Bendis foi a seguinte:

“Uau. Você é a primeira pessoa que eu fico aliviado por ter perguntado como anônimo, porque eu não quero te conhecer. Como um leitor do meu trabalho, eu quero que você me ouça com atenção: você tem grandes, grandes problemas. Quase todas as linhas da sua pergunta cheiram a uma completa incompreensão sobre você como homem e sobre as mulheres em geral. Tudo bem você se interessar mais por um personagem do que por outros. Quer dizer, tudo bem você gostar mais do Ciclope do que da Jean Grey, mas você sugerir que as personagens femininas não são interessantes porque você é homem ou porque você acredita que eu estou sendo manipulado por reclamações das mulheres, é algo fora da realidade. E como um leitor dos X-Men, que tem como filosofia a tolerância e o entendimento… Você perdeu o ponto”.

Perceba que não é prosaico que um profissional do porte de Bendis, um dos nomes de maior influência em uma das gigantes do mercado de quadrinhos, e no meio como um todo, se dê ao luxo de tal exposição. Dada sua posição, grandes seriam as chances de que ele contemporizasse, ou mesmo se esquivasse – mesmo discordando. Não só refutar o machismo explícito de alguém que se diz parte de seu público cativo, mas fazê-lo de forma tão enfática, pode ser indicativo de que uma nova mentalidade está se estabelecendo no meio (sejamos otimistas).

Gays em Tormenta (Foto: Divulgação)
Gays em Tormenta (Foto: Divulgação)
Em assunto correlato, Marcelo Cassaro, roteirista brasileiro de HQs e RPGs, fez algo semelhante há alguns dias. O projeto de seu jogo O Desafio dos Deuses está angariando um financiamento coletivo no site Catarse; uma das recompensas aos apoiadores é uma ilustração original de Cassaro, que mostra dois personagens masculinos se beijando. Após reações explícitas – e estúpidas – de homofobia na área de comentários do site, Cassaro postou o seguinte:

“Hoje ouvi que, após postar em meu perfil esta imagem (que foi uma das recompensas para a campanha do game O Desafio dos Deuses, alguns jogadores reagiram mal. Disseram, inclusive, que não jogariam mais Tormenta.

Não sei quem foram. Mas tenho um recado para eles.

JÁ VAI TARDE. SUMA. Nunca mais volte. Você não faz falta. Seu preconceito, ignorância e intolerância não são bem-vindos.
Tormenta — e também D&D, e a maior parte dos RPGs — é sobre DIVERSIDADE e DIFERENÇAS. É sobre grupos de aventureiros MUITO diferentes uns dos outros, seja em raça, religião, região de origem, estilo de vida. Aventureiros que usam essas diferenças a seu favor, para cobrir os pontos fracos dos companheiros. Tormenta é sobre tolerância, sobre aceitação do novo e desconhecido.”

Também não dá pra esquecer que, praticamente em todos os seus trabalhos, o diretor e roteirista Joss Whedon nos oferece visões muito mais plurais do universo feminino, seja na TV ou nos quadrinhos (e sua primeira grande criação, Buffy – A Caça-Vampiros, também foi tema desse espaço recentemente).

O motivo de todas essas reminiscências é que, recentemente, chegaram às minhas mãos os gibis da editora Valiant, publicados no Brasil também pela HQM Editora. Atualmente, a linha de super-heróis da recém-ressuscitada editora norte-americana contam com dois títulos em sistema de mix: X-O Manowar e Universo Valiant. Uma série em particular despertou meu interesse: Harbinger, inicialmente publicada no primeiro mix, posteriormente reposicionada no segundo. O título ganhou minha atenção por duas razões: a primeira é que a série melhora exponencialmente ao longo do tempo. A segunda é que ela apresenta uma super-heroína gorda.

Sem eufemismo: Zephyr, uma super-heroína gorda (Foto: Divulgação/Valiant).
Sem eufemismo: Zephyr, uma super-heroína gorda (Foto: Divulgação/Valiant).

Sem eufemismos. Nada de “cheinha”, “rechonchuda”, “corpulenta”. Ela é gorda. E não há problema algum com isso.
A personagem em questão chama-se Faith Herbert; seu codinome de super-heróina é Zephyr. Sua origem parte de um clichê: adolescente nerd hostilizada por todos, tem super-poderes despertados por Peter Stanchek, personagem principal da série (poderes de vôo, aliás, uma ironia até interessante). Ainda que sua auto confiança só se consolide após o surgimento de seus poderes – que ela só se sinta “especial” após perceber que faz parte de algo maior, sua constituição é mais uma prova de que antigas fórmulas e velhos preconceitos não sejam regra intocável na indústria.

Zephyr não é necessariamente uma personagem nova – a Valiant originalmente publicou a série em meados da década de 1990. A nova série, iniciada em 2012, trouxe a personagem de volta com as mesmas características de sua encarnação original. Mas para mim, que não conhecia a editora e nem os personagens, foi uma grata surpresa ver uma heroína “fora-da-caixa” como essa. E como essa encarnação parece estar durando mais do que a anterior, mais leitores – assim como eu – terão a chance de perceber que pode, sim, haver diversidade (positiva) no mundo dos quadrinhos. Nada mais propício nesses tempos, em que o machismo e o(s) preconceito(s) parecem mais às claras.

Mas nem tudo está perdido.