Entrevista Alceu Valença: “Nunca me curvei à indústria da música”

Crédito Antonio Melcop Divulgação
Alceu revisita mais uma vez o universo do cangaço. ( Antonio Melcop/Divulgação).
Alceu Valença estreia como diretor. (Foto: Marcos Pacheco/Divulgação).
Alceu Valença estreia como diretor. (Foto: Marcos Pacheco/Divulgação).

Alceu Valença recorre ao cinema para dar poesia ao cangaço de Lampião
Em A Luneta do Tempo, projeto que durou 15 anos para ser concluído, artista pernambucano une cordel à narrativa cinematográfica.

Por Karen Lemos
De São Paulo

Quando o pai Décio de Souza Valença morreu, Alceu Valença lembrou das histórias que ele lhe contava quando pequeno; eram histórias sobre um passado marcado por fábulas e sangue e que, de tão encantadoras, fizeram o artista sentar-se na frente do computador para escrever um projeto que durou 15 anos para sair do papel. A demora, entretanto, valeu a pena.

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Ainda sem saber muito bem o que fazer com o que tinha escrito, Alceu levou sua saga para as telonas após receber um incentivo de Walter Carvalho, renomeado fotógrafo de longas como Carandiru e Madame Satã. “Isso aqui dá um filme”, bradou ao ler os rascunhos de Alceu.

Com uma visão profissional e cheia de poesia, o cantor e compositor pernambucano faz sua estreia no cinema com A Luneta do Tempo, exibido durante a 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O universo do longa-metragem diz tanto sobre Alceu quanto seu protagonista: Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.

“Eu vivi nesse mato aí, sou lá do Sertão de Pernambuco”, já chegou dizendo Alceu, em conversa com a Revista O Grito!, que é de São Bento do Una, onde parte das filmagens foram realizadas. Sem poupar cangaceiros, vaqueiros, cavalo marinho, violeiros, poesia, cordel, circo e outros personagens da herança cultural nordestina, Alceu narra uma história de vingança que atinge três gerações diferentes. “O filme traz questões, metáforas, como a metáfora da vida e do tempo. A questão do tempo para mim – passado, presente e futuro – é tudo agora”, pontuou.

Com essa linha de pensamento, Alceu narra o confronto entre Severo Brilhante (Evair Bahia) – braço direito do bando de Lampião (Irandhir Santos) e Maria Bonita (Hermila Guedes) – e Antero Tenente (Aramis Trindade) pelas caatingas do Nordeste, bem como seus desdobramentos no futuro. Há, ainda, histórias paralelas, como a do poeta Severino Castilho que escreve um cordel a respeito de um encontro de Lampião e Maira Bonita no paraíso.

“Nunca me curvei à indústria da música; com a indústria do cinema não seria diferente. Não faço nada por encomenda”

No elenco, além de nomes conhecidos do cinema nacional, como os já citados Irandhir e Hermila, Alceu também trouxe seus filhos, Ceceu, Juliano e Rafael, e amigos próximos, como os músicos Charles Teony e Ari de Arimatéia. “A escolha de atores foi muito natural, da forma como gosto. Veio quem estava perto de mim”, contou o diretor.
Natural também foi o casamento entre música e cinema em A Luneta do Tempo. Não estamos falando apenas da trilha sonora, escrita, claro, por Alceu. Os diálogos e boa parte dos sons, como tiros e passos, são todos ritmados como em uma sinfonia ou, melhor dizendo, como em um conto de cordel.

“Por ter tido essa ideia de fazer um musical, eu peguei todas as falas do roteiro e mostrei para os atores como fazer. Não fiz com a intenção de que eles me imitassem, mas queria que eles entendessem o tempo das falas, já que o filme foi todo feito em cima da música”, explicou Alceu, que tomou esse cuidado para que os atores soubessem usar pausas durante as rimas. “Não queria cansar o público”, pontuou.

Alceu revisita mais uma vez o universo do cangaço. ( Antonio Melcop/Divulgação).
Alceu revisita mais uma vez o universo do cangaço. ( Antonio Melcop/Divulgação).

Aos 68 anos, sendo 45 dedicados à música, Alceu tirou de letra a produção da trilha sonora (cerca de 80 músicas foram feitas para o filme). O mesmo não aconteceu com a direção, que necessitou de estudo, empenho e muita força de vontade para que a estreia fosse magistral.

“Dizem que o pessoal de cinema faz bullying com quem não é da área” declarou em tom bem humorado. “Então, fiz algumas aulas com Alessandra Alves, professora de cinema. Mas como eu não queria que meu filme fosse parecido com o de outras pessoas, fui estudar por mim mesmo; comecei a ver muitos filmes – alguns bons, outros ruins – e reparar na linguagem cinematográfica de cada um deles”, recordou o artista, que fez questão de participar de todo o processo para dar uma personalidade única ao seu projeto. “Nunca me curvei à indústria da música; com a indústria do cinema não seria diferente. Não faço nada por encomenda, respeito quem faz, mas eu não funciono dessa maneira. Queria fazer um filme meu. Pode ser ruim, pode ser o que for, mas é meu”.

Além de dirigir, Alceu também atua no longa-metragem na pele do palhaço Véio Quiabo; é uma atuação inspirada, revelando um talento do artista para a comédia. Não foi a primeira vez que Alceu mostrou seu lado ator. Em 1997 ele interpretou o próprio Lampião na novela Mandacaru ao lado de Daniela Mercury como Maria Bonita. Foi naquela época, inclusive, que Alceu guardou a roupa do cangaceiro como lembrança do trabalho que realizou na televisão. Mal sabia que ele que, anos depois, Lampião voltaria a cruzar seu caminho como nos versos do cordel de Severino Castilho: “Pela luneta do tempo, eu serei ressuscitado”, avisa o cangaceiro.