Debaixo D’água
Fernanda Baukat e José Aguiar
Nemo, 200 páginas, R$ 64,71 / 2024
Assim como todas as outras discussões que dizem respeito ao corpo da mulher, a gestação também é um espaço de embates e opressões; um assunto que ainda é cercado por tabus e censuras, mantido em uma esfera fora do cotidiano. Mas, felizmente, assim como uma série de outras questões, tem sido reinserido no debate público com a perspectiva de quem tem autoridade no assunto: a pessoa que engravida.
Perceptivelmente, essa é a intenção de Debaixo D’água, de Fernanda Baukat e José Aguiar, que fizeram um trabalho primoroso em desconstruir e narrar da maneira mais clara possível as implicações, contradições, dores e alegrias de ser alguém gestante no Brasil.
Para quem tem a mesma perspectiva que eu – uma pessoa que nunca viveu com a possibilidade de engravidar – a HQ é, primeiro de tudo, informativa. As discussões pelo direito de conduzir uma gravidez com autonomia não são homogêneas na nossa sociedade, ainda que atravesse todos os indivíduos – seja como genitor ou como filho. É nesse ponto que Debaixo D’água toca e faz pensar.
Com uma abordagem jornalística, a narrativa quase autobiográfica de Baukat e Aguiar nos dá o suporte técnico das questões relacionadas à gravidez – como o dado sobre o aumento absurdo das cesáreas -, mas concentra sua riqueza na sua análise subjetiva dos desrespeitos e opressões sofridos pelas mulheres. As personagens Fernanda e José ilustram a desumanização contínua que a medicina tradicional e o mercado de saúde promovem sobre mãe, principalmente, e sobre o pai.
Médicos autoritários e que se comportam antes de tudo como comerciantes; maternidades hostis que isolam as mulheres grávidas e causam insegurança em um momento de vulnerabilidade como o do parto; planos de saúde com preços e políticas abusivas em relação às consultas do pré-natal. Todas essas questões são postas nos quadrinhos de maneira simples e direta, e aqui vale sublinhar o trabalho habilidoso do roteiro de nos aprofundar no assunto de maneira ágil mas, ainda sim, muito completa nas informações.
Ao mesmo tempo, essa a carga informativa é permeada pela história e pelos sentimentos dos personagens, a inseguranças em relação à criação e relação com o futuro filho, cansaço, indignação, tudo isso é colocado na trama; que, aliás, usa o dispositivo dos sonhos para tornar visível toda essa confusão que passa pela cabeça de quem está envolvido na gestação. Em determinado momento, é até possível se pegar tentando interpretar os sonhos junto das personagens. Nos sonhos é que estão as ilustrações mais bonitas e artisticamente profundas. O toque de usar ilustrações em negativo constrói imagens elaboradas que demandam tempo para apreciar e entender também.
“Hoje, o que era para ser um projeto natural, repleto de beleza e humanidade, se torna produto comercial, cosmético e prático”; essa frase do posfácio ajuda a encapsular a discussão pautada na HQ. O que Fernanda e José buscam é justamente o reconhecimento da humanidade no processo da gestação e, se ampliarmos a discussão, um reconhecimento dos direitos das mulheres sobre o seu corpo e sua autonomia, um discurso que se torna ainda mais pertinente em um período marcado pelas tentativas – algumas bem sucedidas – de tomar de quem gesta o direito de assumir o controle do próprio corpo e do corpo de quem ela carrega dentro de si.
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