Crítica: Toda Rê Bordosa, de Angeli

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VIDA E OBRA DA PORRALOCA
Criada por Angeli, tiras de Rê Bordosa ganham edição de luxo e ajudam a contextualizar mudanças sociais no Brasil desde o fim dos anos 80

Por Paulo Floro

Chegou às livrarias o livro que compila toda a vida de uma das personagens mais famosas dos quadrinhos brasileiros, a porra-louca profissional, Rê Bordosa. Criada pelo cartunista Angeli, ela fez sua estreia na Folha de S. Paulo, em 1984. Depois de uma longa trajetória, com passagens pela revista Chiclete Com Banana e livros próprios, ela foi morta pelo próprio criador em um momento de crise. O crime causou problemas ao seu autor, que segue cobrado pelos fãs pelo retorno de sua criatura.

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Leia trecho da HQ Toda Rê Bordosa

Mais do que uma personagem que alcançou fama além dos planos de seu autor, ela conseguiu acompanhar transformações vividas no Brasil entre os anos 1980 e 1990. Deitada em sua banheira, recebendo homens e mulheres, bebendo descompassadamente e fumando um cigarro atrás do outro, suas tiras traziam referências à política, economia e sociedade. Revelam também uma postura controvertida mais aceita pelo senso comum do que hoje. Como se o autor conseguisse trabalhar na linha da ironia sem despertar ira de conservadores.

É o caso do aborto. Angeli trabalha sua visão da polêmica decisão de interromper a gravidez com galhofa, o que hoje com certeza causaria dor de cabeça e debates ~polemicões~ na imprensa. Como o autor disse em sua mesa durante a Festa Literária Internacional de Paraty – Flip 2012, ao lado de Laerte, caso existisse atualmente, Rê Bordosa seria apedrejada na rua. A declaração faz sentido. Ler suas tiras atualmente desperta uma nostalgia (mesmo para quem não viveu a época) de um mundo menos politicamente correto e com mais espaço para provocações inteligentes.

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A forma como foi morta por Angeli deixou explícito seu despreza (ou raiva) pela personagem. Ela foi jogada de uma ponte, depois queimada, mas por fim morreu por um vírus mortal chamado “tedius matrimonius”. Tanto sadismo chegou a ganhar a imprensa nacional à época, tamanha a fama da tira. Desbocada, suja, bêbada, Rê foi a anti-heroína mais simpática das HQs nacionais. Encostada ao balcão, ela estava sempre a pedir um copo de vodka (sua bebida preferida) e contar desabores emocionais sem nenhum pudor, nem remorso.

Contada de maneira tradicional, as tiras de Rê Bordosa fazem parte de uma fase prolífica de Angeli, em que ele tornou conhecido outros personagens como Meia-Oito, Os Skrotinhos, Bibelô, Wood & Stock. Atualmente, sua produção alcança uma proposta mais experimental, sem protagonistas e por vezes sem necessidade de fazer humor. Toda Rê Bordosa mostra, ainda que discretamente, uma mudança no estilo do autor, quando ele mostra “Memórias de Uma Porraloca”, de 1996, com um traço menos estilizado. Isso é aprofundado ainda mais na série “Vodka”, de 2009, em que Rê Bordosa (ou representações dela) aparece para comentar como o mundo tornou-se chato e proibitivo.

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Foto: Divulgação

A edição da Companhia das Letras, através de seu selo Quadrinhos na Cia é primorosa. Grande parte das tiras teve o material original restaurado. A letrista Lilian Mitsunaga também fez um ótimo trabalho ao criar uma fonte nova usando a caligrafia de Angeli. O livro de luxo, com capa dura, traz esboços do autor, cartazes, pôsteres e até uma HQ da versão italiana da personagem, Anna Barbera, lançada em 1992. Para os mais puristas e colecionadores, fez falta mais informação como datas de publicações originais. Sem falar que seria mais do que merecido uma introdução ou prefácio. Mas, também, talvez não combine com Rê Bordosa tanta pompa e circustância.

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Angeli
[Quadrinhos na Cia/Cia das Letras, 216 págs, R$ 64 / 2012]

Nota: 9,0

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