Crítica – Livro: Salinger, de David Shields e Shane Salerno

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Foto: Divulgação/Paul Fitzgerald/The Story Factory

MITO EM PEDAÇOS
Com especulações dignas de tabloide, biografia de Salinger pouco acrescenta ao recluso escritor de O Apanhador do Campo de Centeio

Um dos livros mais aguardados deste ano, Salinger  foi lançado com a promessa de ser a mais completa e definitiva biografia do norte-americano J.D. Salinger, autor que, após o tremendo sucesso do seu O Apanhador no Campo de Centeio, resolveu viver recluso até o dia em que parou definitivamente de publicar o que escrevia, se transformando, assim, em mito. O livro publicado, porém, fica aquém das expectativas.

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Com a proposta de apresentar uma estrutura de história oral, o livro é quase uma transcrição do documentário que o acompanha intercalando diversas citações de entrevistados que teriam conhecido Salinger (e muitas que não o conheceram) e outras retiradas de outros textos publicados, artigos e entrevistas, resultando em um relato baseado em fragmentos e muitas especulações. Para saber quem são essas pessoas – e se o material recolhido é original do livro ou extraído de outras fontes – é necessário passar pelo incômodo de ir e voltar ao apêndice, o que o leitor médio provavelmente vai se enfastiar de fazer, se chegar a fazê-lo, terminando por depositar sua confiança de que todo o material do livro é original.

Os escritores David Shields e Shane Salerno partem do pressuposto de que Salinger seria um autor (e um homem) essencialmente traumatizado pela guerra – e ainda, que O Apanhador seria um romance de guerra – e dedicam uma boa parte do livro contextualizando o período em que Salinger passou por ela, com vários depoimentos de ex-combatentes que imaginam o que o autor deve ter passado. E assim é todo o livro: ainda que traga trechos de um material novo interessante como entrevistas e cartas não publicadas que permitem vislumbres sobre a vida e a personalidade do autor, estas são poucas e esparsas. O que se sobressaem são as análises frágeis e cheias de conjecturas que chegam ao nível do tabloide quando escancara a influência que a suposta condição de Salinger de ter apenas um testículo teria na sua obra ou como um determinado relacionamento o teria condenado a buscar apenas a companhia de meninas muito jovens. Neste ponto, Salinger é retratado como um verdadeiro predador que busca garotas inexperientes apenas para moldá-las e rejeitá-las logo que se tornam mulheres. Um bom exemplo de material descartável está na página 227, no capítulo a respeito da aversão de Salinger à adaptação da sua obra para o cinema:

Eberhard Alsen: Quando Salinger mostra desagrado por Hollywood e pelo cinema, não se deve imaginar que ele detesta o cinema como forma de arte; afinal, ele tinha uma coleção enorme de filmes.

David Shields: Em O Apanhador no Campo de Centeio, Holden Caulfield mostra uma profunda ambivalência em relação à Hollywood. Ele alimenta uma mescla fascinante de sentimentos ambíguos em relação ao fato de seu irmão D.B. trabalhar como roteirista. (…) Os filmes são uma ideia fixa para Holden.

Leslie Epstein: Segundo muitos, o desprezo de Salinger por Hollywood encobre um fascínio não tão disfarçado pelo poder do estrelato.
       Ao que consta, e talvez não surpreenda, vindo do criador de O Apanhador no Campo de Centeio, ele admirava muito Marlon Brando.

Divulgação
Uma das fotos raras de Salinger, tiradas sem que o escritor soubesse: reclusão abriu margem para imaginação. (Divulgação)

Tivessem Shields e Salerno optado por manter apenas o material inédito, apoiado pelas entrevistas com pessoas que de fato conheceram Salinger, além do interessante aparato de fotos, documentos e trechos de cartas que o livro traz, este teria muito menos páginas e, consequentemente, muito maior aproveitamento. É necessário um pouco de persistência para concluir o catatau de mais de 600 páginas, cuja estrutura pouco elaborada literariamente se mostra repetitiva e monótona.

Sendo muito menos uma biografia propriamente dita e muito mais um livro de depoimentos sobre Salinger, que aprofunda muito pouco o conhecimento sobre sua obra, não espanta o livro ter desagradado a leitores mais sérios, mas vale como introdução para curiosos interessados em um ponto de partida.

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David Shields, Shane Salerno
[Editora: Intrínseca, 704 páginas, R$ 49,90/2014]
Tradução: Carlos Irineu da Costa, Cássio de Arantes Leite, Denise Bottmann, Donaldson Garschagen e Jorio Dauster
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