Crítica-HQ: Sopa de Lágrimas e a educação sentimental de Gilbert Hernández

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A capacidade que Gilbert Hernandez tem de acessar um imaginário coletivo de seus leitores é a principal força de Sopa de Lágrimas, obra que a editora Veneta lançou nesse segundo semestre do Brasil. Parte do universo da série em quadrinhos Love & Rockets, a HQ reúne histórias passadas no universo da fictícia cidade de Palomar, em algum lugar na América do Sul.

Os personagens que permeiam a obra aglutinam diversas referências de um passado latino-americano, literário e histórico, que causa uma sensação de pertencimento a qualquer um que tenha tido contato com essa cultura. Para quem é estranho a esse universo, o que direciona a leitura é o estranhamento prazeroso de se adentrar a um ambiente totalmente novo. São, portanto, muitas leituras dentro de Sopa de Lágrimas.

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Exímio – e prolífico – contador de histórias, Gilbert Hernandez construiu Palomar ao longo de décadas, adicionando tantas camadas que deram a esse mundo fictício a mesma profundidade de Macondo, terra imaginada por Gabriel García Marquéz. Falando em Marquéz, a comparação quase automática entre essas duas obras acontece por conta de personagens e ambiente latinos bem verossímeis. Mas, como afirmou em entrevista ao Vitralizado, Hernandez não tinha lido a obra do autor colombiano até o número 14 da sua revista, nos anos 80.

Há muitas semelhanças entre as duas obras, mas enquanto Marquéz se apoia fortemente no realismo fantástico, Hernandez busca nosso afeto em um passado que já vemos com distanciamento. Temos a forasteira Luba, “bañadora” oficial da cidade; Típin Típin, um incondicional romântico, a musculosa parteira Chelo, a corredora Diana e vários outros tipos peculiares, sempre nutridos de uma passionalidade que é costumeiramente atribuída aos latinos. Outra característica que perpassa Sopa de Lágrimas e que o coloca no conjunto de clássicos sobre esse imaginário da América do Sul é o que poderíamos chamar de “melancolia latino-americana”. No nosso continente, como nenhum outro, há uma nostalgia como parte da consciência coletiva, fruto de uma história nascida a partir da exploração ao longo dos séculos. Isso é muito bem debatido em obras de autores como Eduardo Galeano (e seu clássico As Veias Abertas da América Latina), Isabel Allende, Pedro Páramo e muito outros. E talvez por isso que temas como tristeza, saudade e melancolia sempre estiveram ligados à nossa produção artística quase como um gênero próprio e indissociável.

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As marcas dessa melancolia perpassam todo Sopa de Lágrimas, que no original chama-se “Heartbreak Soup”, com mais ou menos intensidade. Palomar é uma cidade esquecida por Deus e pelo estado, onde avanços do capitalismo demoram a chegar e onde os seus 400 habitantes possuem uma relação inevitável de proximidade. O subdesenvolvimento, que surge como crítica, é também o mote para as histórias. Não há telefone, televisão ou nenhum avanço tecnológico que esperaríamos ver nos anos 1980. Em uma passagem, Hernandez faz uma cutucada no imperialismo ao mostrar um fotógrafo norte-americano com pretensões antropológicas que vem registrar “a poesia e a naturalidade intocada do lugar”, sem se preocupar com o que as pessoas achavam. Mas o tom político é diluído dentro da narrativa de forma a não prejudicar o relacionamento do leitor com aqueles personagens. A proposta do autor é criar uma sensação de familiaridade em seu universo.

Contadas de forma simples, com a narrativa sempre muito direta, Sopa de Lágrimas embala a leitura sem fazer uso de muitos artifícios. Até a disposição de quadros é a mais comum possível dentro das possibilidades das histórias em quadrinhos. O traço de Hernandez também é rústico, sóbrio e muito influenciado por um formalismo herdado dos autores clássicos norte-americanos dos anos 1940-60, como Alex Toth e Jack Kirby.

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Nascido na Califórnia, nos EUA e de ascendência mexicana, Gilbert Hernández fundou, ao lado dos irmãos Mario e Jaime Hernández a série em quadrinhos Love & Rockets no início dos anos 1980. A revista intercalava histórias passadas em Palomar com a narrativa Lôcas, de Jaime, cujos protagonistas fazem parte da cena punk de Los Angeles dos anos 1980. Os irmãos decidiram enviar aquele zine para a Comics Journal, a mais respeitada publicação sobre HQs dos EUA, como uma espécie de provocação. Não era provável que aquele gibi tão pessoal e sem pretensão pudesse atrair interesse de nenhum editor. O efeito foi o oposto: a Fantagraphics, editora da Comics Journal, respondeu àquele envio com entusiasmo e, nos anos seguintes, transformou a série em uma das obras em quadrinhos mais importantes e respeitadas do mundo. Sua influência se estende por uma geração de autores que surgiram na segunda metade dos anos 80 e que tem como fãs nomes como Neil Gaiman.

A série sempre marcou presença no mercado editorial brasileiro, mas nunca teve uma regularidade de publicação que garantisse um sucesso mais amplo. A Veneta inicia com Sopa de Lágrimas uma trilogia das histórias de Palomar. A expectativa é que os próximos números saiam nos próximos anos.

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