Crítica HQ: Paolo Pinocchio de Lucas Varela

Paolo Pinocchio Capa Materia

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Versão de Pinóquio do argentino Lucas Varela mente para debochar do mundo atual

Por Rodrigo F.S. Souza

Desde sua criação em 1883 por Carlo Collodi, Pinóquio, o boneco de madeira que mentia compulsivamente, ganhou várias versões para o cinema, TV e quadrinhos. A mais conhecida de todas é a adaptação feita pelos Estúdios Disney, em que sua história e personalidade foram amenizados para tornar o personagem mais inocente e simpático ao público infantil. No cinema, outra que se destacou foi a versão do boneco vista nos filmes da série Shrek, e uma live action bem peculiar interpretada pelo ator e diretor italiano Roberto Benigni. Enquanto isto nos quadrinhos tivemos sua versão mal-humorada e cínica da série Fábulas de Bill Willingham, e a releitura mais pessimista, bélica e um tanto niilista de Winshluss, lançada em versão luxuosa pela Editora Globo em 2012.

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Paolo Pinocchio apresenta uma nova interpretação do personagem clássico, desta vez pelo argentino Lucas Varela. Sua versão mistura um pouco da personalidade do Pinóquio de Fábulas, com o tom usado na graphic novel de Winshluss, só que de maneira mais leve e menos explícita e escatológica. O Pinóquio de Varela é um personagem mais malandro e mais experiente que suas versões mais conhecidas.

Paolo é um boneco de madeira que mente e engana compulsivamente, algo que nem o fato de já ter morrido inúmeras vezes o impede de fazer. Isto o leva a terminar sempre no Averno (que na mitologia romana é uma cratera que dá acesso ao Inferno), de onde sempre dá um jeito de escapar, e “reencarnar”. Diferente de sua versão original, este Pinocchio falho serve como um instrumento que Varela usa para apontar alguns problemas que ele enxerga na sociedade e no mundo, através do desenrolar de situações absurdas, um tanto surreais e extremamente fantasiosas nas quais Paolo se mete devido a suas mentiras. De certa forma ele é o único capaz de desafiar “verdades” fabricadas e impostas com o objetivo de levar uma coletividade a comportar-se como gado. O Pinocchio de Varela mente como forma de protesto subconsciente contra um mundo lotado de mentiras contadas como “verdades dogmáticas”.

Um dos pontos que torna Paolo Pinocchio mais do que uma divertida crítica a questões políticas, religiosas e comportamentais são as inúmeras referências a clássicos da literatura e dos contos de fadas. A HQ já começa com um prólogo estrelado por uma versão infantil de Dante (Alighieri) e uma versão canina de Virgílio, ambos personagens da Divina Comédia, que dá o tom da história e apresenta o Averno. Nesta primeira sequência, sem ligação direta com o restante do álbum, são apresentados os vários significados filosóficos, fisiológicos, metafóricos e metafísicos da dor, enquanto brinca com conceitos da Divina Comédia, que serão explorados ao longo do álbum. Dante volta a aparecer mais adiante como coadjuvante de uma das histórias, em outra das homenagens à obra prima do poeta italiano.

Pinocchio interagindo com vários personagens de contos de fadas clássicos (Divulgação/Zarabatana Books)
Pinocchio interagindo com vários personagens de contos de fadas clássicos (Divulgação/Zarabatana Books)

Outra brincadeira é feita no capítulo 1, que revela algumas das mentiras que condenaram Pinocchio ao Averno. Ele merece uma atenção especial, pois há muitas referências a contos de fadas clássicos. E a homenagem a H. P. Lovecraft no final insanamente frenético e apoteótico fecha a história principal com chave de ouro.

Além das brincadeiras com personagens da literatura, a obra também diverte ao fazer o protagonista contracenar com alguns personagens da cultura pop. Um dos que se destacam é a versão do He-Man que, no capítulo em que Paolo vai para o Averno pela primeira vez, sofre nas mãos de “policiais corruptos”.

Mas a preocupação de Varela não é apenas divertir o leitor. Há muitas críticas embutidas nas histórias. O capítulo 2 comenta de maneira leve e descontraída o processo de idiotificação ao qual se submetem os fanáticos religiosos que se deixam guiar cegamente por falsos profetas, os quais só visam benefícios egoístas, e tiram vantagem da ignorância de uma massa de acéfalos desesperados por salvação [literal, no caso da história].

Pinocchio usando um corpo de almas ludibriadas para acreditarem nele como seu "Salvador". (Divulgação/Zarabatana Books)
Pinocchio usando um corpo de almas ludibriadas para acreditarem nele como seu “Salvador”. (Divulgação/Zarabatana Books)

Já no capítulo 5 Varela alfineta a Inquisição da Igreja Católica, e suas manobras político-religiosas “de condenar ao Inferno” as almas de homens que não acreditavam em seus preceitos, que por esta razão tornavam-se ameaças à “fé dos católicos”. Na história Pinocchio personifica a liberdade de ter outras crenças, representada por seu ato heroico de libertar do Averno uma sacerdotisa pagã, que foi “enganada pelos inimigos da deusa [Ártemis]”. Representante de uma religião anterior ao catolicismo, a sacerdotisa e suas crenças foram condenadas à danação. O autor iguala a condenação de pagãos ao inferno à extinção de religiões que foram consideradas proibidas, ao apresentar um salão do Averno lotado de relíquias de religiões proibidas (que gera outra piada quando a sacerdotisa encontra um substituto bem peculiar para o nariz quebrado de Paolo).

Varella usando aqui um estilo que lembra muito a psicodelia super-heróica do Madman de Michael Allred (Divulgação/Zarabatana Books)
Varella usando aqui um estilo que lembra muito a psicodelia super-heróica do Madman de Michael Allred (Divulgação/Zarabatana Books)

Outro ponto que se destaca em Paolo Pinocchio são os desenhos de Lucas Varela. Em alguns trechos seus traços detalhados lembram os de Sérgio Aragonés, mas também guardam semelhança com o trabalho de Chris Ware e do falecido Seth Fisher. Algumas das monstruosidades e demônios que aparecem na história lembram criações de Hayao Miyazaki e Mike Mignola. E seu estilo de humor também se assemelha à psicodelia do herói Madman de Michael Allred, e à contundência das tirinhas e charges do cartunista Laerte. Além disto, o visual de Paolo lembra muito, propositalmente ou não, o do personagem Usopp, do mangá One Piece de Eiichiro Oda, que também é um mentiroso incurável baseado no Pinóquio clássico. Enfim, referências visuais, tanto explícitas quanto sutis, é o que não falta na graphic novel.

O álbum ainda trás como extras algumas histórias curtas que brincam um pouco mais com a relação de Pinocchio com vários outros personagens de contos de fadas, e seu dom nato de mentir e enganar; pin-ups; e até um labirinto para o leitor tentar encontrar o caminho para levar Paolo até um tesouro.

Paolo Pinocchio é mais uma prova de que ainda há muito material de quadrinistas argentinos que merece ser conhecido por leitores brasileiros. Vale pela arte caprichada, a diversão proporcionada, e as reflexões que a história desperta de maneira bem descontraída e pouco pretensiosa. Mais um ótimo acerto da Zarabatana Books. Fica a torcida para que novas obras de Lucas Varela sejam publicadas por aqui.

Paolo-Pinocchio-ZarabatanaPAOLO PINOCCHIO
De Lucas Varela
[Zarabatana Books, 96 págs., R$50,00/ 2014]

Nota: 8,0