Fotos de Lívio Fabrício
Desde o primeiro episódio da temporada de estreia do Drag Race Brasil, “Vem pro Estúdio da Betina Polaroid” não saiu da boca dos fãs do reality e jogou Betina Polaroid para o sucesso. A drag queen carioca encantou boa parte dos fãs da franquia brasileira com sua estética roqueira, seu carisma, sua voz rouca e sua trajetória ascendente durante a competição que a levou a ser uma das finalistas do programa.
No começo da carreira, nos idos de 2015, Betina teve a ideia de fazer seus primeiros figurinos usando sucata de material fotográfico, filmes vencidos, negativos velhos, filtros de câmera sem uso, entre outros materiais. A queen também é fotógrafa e já registrava a cena drag no Rio de Janeiro antes de se montar pela primeira vez. “Enquanto estava fotografando foi uma identificação muito forte, muito imediata com esses artistas que eram o meu objeto de trabalho e se tornaram o meu espelho”, revela.
Betina há alguns anos vem registrando as personagens da cena LGBTQIA+ da noite carioca e suas montações em festas como Drag-se, Priscilla, V de Viadão e Rebola. Entrevistamos a queen de forma exclusiva para a Revista O Grito!, com sessão de fotos feita pelo fotógrafo Lívio Fabrício, na areia da praia de Boa Viagem, na Zona Sul do Recife. A artista revela que a drag reforça a importância da atração por dar visibilidade a pessoas queers em meio a uma onda conservadora no Brasil. Confira:
Em que momento você se descobriu? Como é que a Betina começou na sua vida?
Eu já fotografava. Antes de começar a me montar, já tinha uma carreira de fotógrafo de 20 anos de estrada, desde a época de faculdade. Trabalhava com fotografia comercial e com fotografia de publicidade e estava sentindo muita falta de voltar a ter um projeto pessoal e artístico. Quando comecei, fotografar para mim era uma forma de expressão artística e, depois aquilo virou meu ofício. Sempre gostei muito da minha profissão de fotógrafo, mas sentia falta desse lado de expressão e estava atrás de algo que me motivasse a voltar a sair com a câmera por prazer e não para atender a um cliente. Comecei a assistir ao Drag Race, estava completamente viciado na série, já tinha assistido até a quinta temporada, que acho maravilhoso.
Ao mesmo tempo, percebi que a cena drag estava se renovando, tinham muitos novos artistas surgindo e cada vez mais eventos com performance drag e, por ter redescoberto também a cena drag por meio do programa. Quando era mais jovem, com 20 e poucos anos, já frequentava as casas noturnas, as boates, assistia a shows, conhecia a Suzy Brasil, Desiree Cher, várias drag queens do Rio de Janeiro que eu já tinha assistido presencialmente, mas essa nova cena que veio com esse clube de Drag Race parecia estar lotando os espaços, estava se renovando e com muitas novas expressões, muitos novos artistas.
Aquilo me interessou muito e comecei a sair com a câmera para fotografar como um novo projeto documental. Só que o que aconteceu enquanto estava fotografando foi uma identificação muito forte, muito imediata com esses artistas que na verdade eram o meu objeto de trabalho e se tornaram o meu espelho. Comecei a me ver nesses artistas e a pensar e a refletir sobre como, ao longo da minha vida, a criança viada que era tão espontânea e tão alegre foi se submetendo a uma normatividade, talvez por defesa, porque eu venho de uma geração que sofreu realmente muita homofobia e que a homossexualidade era muito estigmatizada.
Para você ter ideia, a minha adolescência foi a crise da AIDS, então quando estava descobrindo a minha adolescência, e antes mesmo de me entender como gay, tudo apontava que ser gay e ser LGBT era a pior coisa que podia acontecer contigo. A gente tinha igreja dizendo que a gente ia ter inferno, a gente tinha mídia dizendo que a gente ia morrer de uma doença que ninguém conhecia direito. E o bullying era uma coisa muito naturalizada na escola, até os professores faziam bullying com o menino que fosse afeminado. Então tudo isso foi me retraindo. É uma educação e um contexto social que vai te levando a negar a sua verdade para dar conta de uma cobrança social e para lidar com esse medo que era colocado na gente.
E chegar nesses eventos para fotografar e ver tanta gente montada, tanta gente se expressando livremente, tanta bicha afeminada, tanta gente rompendo esses padrões de gênero e fazendo isso por meio da arte foi uma coisa que me apaixonou e me colocou em um lugar desconfortável, escondido ali atrás da câmera. As pessoas me viam como alguém estranho àquele lugar, que estava indo lá para registrar, para fotografar, como alguém não pertencente. Só que na minha cabeça aquilo estava despertando desejo, percebi na verdade que tinha encontrado meu lugar ali, tinha encontrado minha gente, as pessoas que queria ser amigo, queria me relacionar com aquelas pessoas para além da câmera. E a câmera era uma separação entre mim e esse universo, apesar de estar completamente imerso como fotógrafo.
A partir disso, comecei a flertar com a ideia de começar a me montar. Meu marido me incentivou muito. Ele se dispôs a me maquiar e assistir tutorial no YouTube. Nesse processo, tive a ideia de me montar para sair fotografando montada, nessa virada de 2014 para 2015. Foi quando eu comecei a fazer os primeiros experimentos de maquiagem em casa, ainda sem coragem de sair na rua. 2015, na verdade, foi a primeira vez que eu saí montada com a câmera. E foi uma experiência muito louca, as drags que já me conheciam como fotógrafo, que estavam me reconhecendo, até porque tinha a câmera na mão, então já associava logo: “Gente, o fotógrafo veio montado!”. E começaram a me perguntar qual era o meu nome drag.
Comecei a estabelecer uma outra relação com as queens, que não era mais uma relação de dois lados, de quem está fotografando, de quem está sendo fotografada, mas comecei a estabelecer realmente uma relação de companheirismo, de fraternidade, de confiança maior por eu agora fazer parte dessa comunidade que se monta e que se expressar por meio da montação e romper esses padrões. Então, a relação entre a gente foi mudando, a forma de fotografar foi mudando, as fotografias se tornaram outras fotografias e fui tocando esse projeto de ser a drag fotógrafa.
Já nas primeiras noites, saindo montada, estava com interesse em acompanhar o projeto Drag-Se, que era lá do Rio de Janeiro. Esse coletivo surgiu a partir de uma websérie para o YouTube e, além de produzir para o canal, promovia eventos e eu estava querendo fotografar esses eventos. Fui chamada por ser uma drag fotógrafa, convidada pelo diretor do projeto para fazer a cobertura oficial das festas. E, assim, comecei a me profissionalizar nesse lugar de drag fotógrafa, que passou a ser meu principal projeto e, aos poucos, fui trocando os clientes de publicidade pelos eventos, pelas noites, pelos teatros e foi se tornando isso o meu trabalho.
Influências
Vamos falar das influências agora. Você já tem atrás no Instagram e também no Drag Race, Madonna e Bowie.
São muitas referências e gosto de trazer as referências e explicar isso porque tem muito a ver com essa história que acabei de te contar. A descoberta da minha drag veio a partir do resgate da memória daquela criança viada que se retraiu diante do conflito com a sexualidade. A verdade é que é um conflito que passa por gênero, que quando a gente começa a ser chamado de viadinho na escola e a gente não está transando com homem, é uma expressão de uma feminilidade que não é bem vista para um menino. Então começa no gênero e é associada à sexualidade.
Mirando para esse lugar, olho para as referências e para os artistas que já me encantavam naquela época. Isso remonta ao fascínio que tinha, por exemplo, a Elke Maravilha, que era uma verdadeira drag queen na televisão, aquela figura extravagante que eu ficava pensando e fantasia como uma pessoa pode ser assim. Também havia o Ney Matogrosso, que era alguém que me colocava essa questão, aquele homem maquiado, dançando, rebolando, sendo aplaudido por tudo o que ele fazia. Eu pensava que eu poderia ser um artista assim, poderia me expressar dessa forma.
A descoberta da minha drag veio a partir do resgate da memória daquela criança viada que se retraiu diante do conflito com a sexualidade.
Betina Polaroid
E esses foram os primeiros artistas da sua infância?
A Elke, o Ney, a Baby Consuelo e o Pepeu Gomes com os cabelos coloridos. O Pepeu cantando “ser um homem feminino não fere o meu lado masculino”. Tudo sempre, mesmo ainda criança, isso já me colocava num lugar de curiosidade, de interesse. Então, comecei a resgatar essa referência e, com isso, vieram também as referências internacionais como a Madonna. Eu acho que é a artista que é meu grande ícone, assim, meu grande ídolo.
Ganhei o primeiro disco da Madonna e ouvia em casa sem parar e gostava de cantar todas as músicas fechado no meu quarto sem ninguém ver. E a Cyndi Lauper, além de outras artistas dessa geração como a Nina Hagen, que era uma roqueira de cabelo rosa. Na época não era nem tanto a sonoridade das músicas, mas era mais a estética, o visual. The B-52s, com aqueles cabelos, aquelas perucas maravilhosas. Tudo isso me encantava na infância e na adolescência.
Por isso, na drag eu gosto de catar essas referências e fazer a minha salada. Às vezes, faço uma montação explicitamente inspirada em cada um deles, mas a maior parte do tempo, pego um pouco de cada um porque acho que são essas referências que nos ensinam e constroem a nossa estética como pecinhas de um quebra-cabeça.
Não posso deixar de falar de Rita Lee, minha deusa também. Tenho lembrança dos meu quatro, cinco anos de idade cantando as músicas dela, que sempre achei a mulher mais maravilhosa. Então nunca deixo de reverenciar esses artistas, porque foi a partir delas que eu descobri que eu queria ser artista também.
Momento da arte drag
Você acha que vive um bom momento para a arte drag aqui no Brasil?
A gente esperou tanto por esse momento da franquia do Drag Race no Brasil, sempre quis, sempre fantasiou a respeito do momento que a gente teria uma franquia nacional e que a gente tivesse essa oportunidade de estar lá e de ver a nossa cena participando desse que é um programa que colocou a cultura drag no mainstream do mundo inteiro. É um programa que está já em 16 países, se não me engano, e que coloca um holofote na nossa arte, que faz com que a gente consiga furar bolhas e alcançar muito mais gente.
Acho importante a gente estar vivendo esse momento e falando sobre essa visibilidade, porque não é sobre as 12 artistas que vão estar numa temporada, é sobre ter incontáveis artistas incríveis, uma quantidade de talento que a gente tem nesse país, que é continental, e que já é o caldeirão de diferentes culturas, com uma diversidade enorme de estéticas, de referências culturais, de expressões de talentos, que é muito rico e que precisa ser visto. São artistas, muitas vezes, pouco valorizados, que gastam mais do que ganham para trabalhar.
Tendo essa plataforma como horizonte, mas também como uma vitrine, atraem olhares de produtores culturais, que podem olhar para essa cena, que podem perceber o potencial desses artistas para trabalhar e que fazemos o trabalho artístico, atraindo público, fazendo espetáculos, fazendo performance, ocupando todo espaço que a gente pode ocupar com artes, independente da gente estar na televisão, porque não é a televisão que nos credencia enquanto artistas, não nos dá esse aval e nem uma coroa de concurso.
A gente precisa entender isso, se autorizar como artista. Deixar para trás de uma vez esse imaginário de arte marginalizada de gueto que a gente viveu. Percebi muito quando comecei a sair para a noite, e assistir artistas drag, na virada do século, como a arte drag era uma coisa muito restrita e muito pouco reconhecida como uma manifestação artística, muito marginalizada e segregada.
Se a gente tem tantos artistas alcançando o mainstream, se a gente tem agora uma Pabllo Vittar, uma Gloria Groove alcançando esse status estratosférico de sucesso, por que não olhar para quem está começando? Por que não olhar para quem está no underground? Por que não olhar para quem está na guerrilha, batalhando para fazer sua arte e oferecer espaços para esses artistas brilharem, porque tem muitas Pabllos, Glórias, Shannons, Organzzas, Betinas e Aquarelas. Tem muitos artistas que estão aí e que merecem esses espaços.
A gente precisa se autorizar enquanto artista. Deixar para trás de vez esse imaginário de arte marginalizada, de gueto, que a gente viveu.
Betina Polaroid
Em choque! 😱
Como é que você recebeu a notícia que tinha sido selecionada?
Em choque! Recebi em choque. Estava atrasada para algum compromisso, tinha acabado de sair do banho, meu marido estava no banho, a gente estava se arrumando apressado para sair. Entrou uma mensagem no meu WhatsApp: “Betina, podemos falar com você?” Notei que era uma mensagem de um número gringo me chamando de Betina. Já deu aquele nervosismo: “Meu Deus, sabe, o que eu falo?”. Respondi assim: “Estou saindo de casa, muito atrasada. É rápido?”. Essa foi a minha resposta. A pessoa do outro lado respondeu: “Sim, é muito rápido”. E falei: “Ah, então tá, pode ligar”. Ele ligou de vídeo, chamada de vídeo e eu estava de cabelo molhado, de toalha. Coloquei celular grudado na minha cara para ele não ver que estava pelado. Eu achava que era apenas o anúncio da seleção para uma próxima fase, alguma entrevista, ou marcar algum compromisso ou falar alguma coisa, mas já sabia que era alguém de Drag Race falando que alguma coisa tinha acontecido, ou para me dispensar.
(Foto: Reprodução/Instagram)
Não imaginei que, naquele momento, seria já [a confirmação]. Quando liguei a câmera, quando olhei a cara do outro lado, a primeira frase dele foi: “Betina, condragulations, você está na primeira temporada de Drag Race Brasil!”. Fiquei olhando para o celular com aquela cara e não tive reação. E ele perguntou: “Você não está feliz?” E aí falei: “Estou em choque, eu nunca esperei!”. E com a cara grudada no telefone, com vergonha de mostrar que estava saindo do banho. Em seguida, veio a conversa explicando que iria receber o briefing. Desliguei o telefone, só que comecei a falar em inglês e o meu marido, que estava tomando banho, me ouviu conversando, percebeu e já botou a cabeça pra fora da janela do banheiro, assim: “O que é? O que é? é? é? é?”
Ele já saiu do banheiro todo molhado, festejando: “Ah, vou pro Drag Race”. E, ao mesmo tempo, com a euforia, veio um desespero: não tinha roupa, sapato, peruca, não tenho nada pra ir para o Drag Race.
Teve que começar tudo do zero?
Quando foram dados os prazos, percebeu que tinha pouco mais de um mês para fazer tudo, uma loucura para produzir tudo, bateu aquele pânico. A preparação foi muito puxada, uma loucura. Durante a pandemia, ainda estava me montando para fazer performances online, e tentando manter o trabalho, mas a pandemia me derrubou na depressão. Não conseguia mais me montar, não conseguia mais produzir nada. E, realmente, parei a drag na pandemia.
Depois que a gente saiu do lockdown, depois das doses de vacina e o retorno à vida normal, ainda demorei um tempo para começar a pensar em voltar a me montar, porque teve todo um tempo de cura também desse processo, de conseguir sair daquela paralisia. E, realmente, só voltei a me montar depois que abriram as inscrições para o Drag Race.
Para se ter uma ideia, a minha primeira performance no palco, desde a pandemia, foi a minha batalha de lipsync contra Diva More. Eu cheguei lá e caí no Drag Race depois de um hiato de mais de dois anos sem me apresentar. Então, imagina se preparar para isso, ter um mês e pouco para retomar a carreira e ir direto para o Drag Race, na primeira temporada brasileira, e ainda caindo já direto no bottom já de primeira?
Inclusive o seu bottom não foi merecido na minha opinião.
Fico muito feliz por ouvir isso com muita frequência, que não foi merecido aquele bottom. Hoje entendo isso porque ouço até hoje as pessoas cantando “Vem para o estúdio da Betina Polaroid!”. Recebo até hoje esses áudios e foi incrível começar o programa com essa música fazendo sucesso, mas quando estava lá eu não tinha a menor ideia, não sabia se a música ia ser um sucesso ou se ela ia flopar, não sabia se o público ia dizer que eu estava subindo nas pesquisas ou se eles iam dizer que eu estava sendo arrastada.
A gente não sabe como o público vai assistir, a gente não sabe quem a gente está conquistando fora dali. Percebi que estava crescendo na competição pelo feedback dos jurados, mas isso também demorou muito porque eu comecei recebendo muita crítica e iniciei a temporada com muita frustração. Então, comecei a competição muito insegura por estar vindo desse lugar, ser a mais velha do cast e uma das mais velhas a terem participado do Drag Race e competindo com pessoas mais jovens, que, supostamente, com mais energia e com outras experiências diferentes das minhas, porque eu não sou uma drag, por exemplo, uma grande dançarina que vai fazer piruetas e espacates no lipsync. Então todas essas coisas que eram meus pontos fracos, já temia isso desde o início.
Mas ao longo do programa, esse seu temor não se confirmou, porque você chegou até à final.
Mas no início estava realmente muito tensa e entendi o meu lugar no bottom no primeiro episódio, porque, embora a música tenha sido muito bem recebida e o meu desempenho tenha sido muito bem recebido pelo público, estava tão nervoso em todo aquele contexto: de estar confinado, sem contato com o resto do mundo, e tendo que desempenhar o meu melhor diante todas aquelas câmeras, dos jurados, toda aquela situação de tensão me colocou num lugar de nervosismo que estava sempre muito inseguro em relação ao que estava entregando. Então quando disseram que tinha ido para o bottom, eu mesmo não tinha muita consciência sobre o que estava fazendo era bom ou não. Estava me esforçando para fazer o meu melhor, estava acreditando que estava entregando o meu melhor, gostei da letra da música que fiz e regravei.
A música que eu canto para Grag Queen [apresentadora do Drag Race Brasil] no ensaio e o jeito que a música ficou na versão final no clipe, é completamente diferente da melodia, porque na hora de gravar a versão final, me ouvia e percebia que não estava funcionando. Fui mudando até ficar satisfeito com o que eu tinha gravado, me empenhei para fazer o “Vem pro estúdio da Betina Polaroid” do jeito que ele foi. Mas não sabia, o meu estado de ansiedade e de pânico não me permitia… E talvez esse estado de nervosismo e de pânico tenha transparecido. Pode ser que isso tenha me colocado no bottom. Essa insegurança talvez transpareceu, assim como eu estava insegura, inclusive na própria batalha de lipsync. Se essa batalha fosse hoje, teria feito muito diferente daquela performance.
desculpa – entregou brilho da cabeça aos pés. Ainda não superei a
beleza desse look, um dos melhores da temporada. (Foto: Fábio Seixo/
Divulgação).
Assisto hoje e vejo o quanto estava inseguro com o sapato que não estava muito confortável para dançar, percebo o quanto eu podia estar mais presente, se eu tivesse mais confiante, e essa confiança só fui ganhando no caminho da competição, conforme fui ficando mais à vontade naquela circunstância, naquela situação, e conforme fui conseguindo ter tranquilidade e acalmar a minha ansiedade para fazer o que sei fazer da melhor forma sem estar o tempo inteiro com medo de falhar.
Estava o tempo inteiro com medo de falhar, mas depois por um lado ter feito o primeiro lipsync já me colocou num lugar de “já passei por isso e não quero passar por isso de novo”. Então, vou pensar em tudo que eu posso fazer para não cair de novo nessa situação, porque queria passar ilesa até a final. Não queria voltar a dublar, porque na próxima poderia não ter a mesma sorte.
E como ficou a sua relação com as meninas? Notei que havia um clima de irmandade entre vocês. Como foi essa convivência lá? Essa troca foi trazida para o pós-programa?
A gente tem uma conexão muito forte, porque só a gente sabe o que a gente viveu, só a gente compartilhou daquelas experiências de tudo aquilo. Só a gente sabe a angústia que é, e a gente só tinha umas às outras. A produção nem sempre estava pra nos ajudar. Muitas vezes, eles estavam ali justamente para nos desafiar e dificultar o nosso caminho. Eles não estavam ali pra facilitar, porque era uma competição e precisavam colocar a gente em situações de limite, de desafio. Tem uma coisa ali que é meio sobrevivência. Sobrevivi até o final porque cheguei na final me arrastando de exaustão física e mental, pois coloquei tudo de mim ali, toda a minha energia, tudo que podia colocar eu coloquei e foi muito intenso.
Então, sempre falo como foi importante estar lá com minhas amigas do Rio de Janeiro, por que a gente já tinha uma amizade, já tinha uma relação construída anterior ao Drag Race, e para gente estava sendo sensacional poder compartilhar a experiência do reality depois de tudo que a gente já tinha vivido juntos. Não era só uma de nós ali, era o nosso rolê ali, era eu e era minha galera.
É a sua família, não é?
Minha família, quase literalmente, minha família drag, porque a gente tem parentescos drag ali por conta de mãe drag de uma, que acaba virando tia… A minha esposa, a Efêmera, que hoje é uma drag aposentada, irmã drag da Organzza.
É uma espécie de genealogia drag?
Exatamente, parentescos queer que nós inventamos e, muitas vezes não tem nome, é só uma grande fraternidade, uma grande família que está sempre se ajudando e produzindo junto e fazendo eventos juntos, participando de concursos e performando juntos. Ter essa rede do programa, tendo chegado lá num lugar de tanta insegurança e talvez num estado mental muito abalado, ter essas pessoas lá era um conforto, uma referência de um dado de realidade. Estava vivendo essa loucura: “para qual planeta me trouxeram?”.
A gente estava retirado da nossa realidade, colocado num estúdio, entre um estúdio e um hotel, vivendo aquela loucura sem nenhum contato com o resto da gente. E ali era a minha referência de que o mundo real existia: olhar para a cara da Organzza, da Shannon, da Miranda, da Diva… das pessoas que eu já conhecia antes. A gente realmente se ajudou, e não só entre as cariocas. Foi muito rápida a conexão também com as outras queens das outras cidades e dos outros estados. Foi muito imediata a conexão.
A gente se ajudava o tempo inteiro: uma emprestava peruca para a outra, roupa, maquiagem, sapato, etc… Ninguém estava ali para sabotar a outra ou para querer que a outra fosse mal para você ir bem. É muito angustiante numa situação dessa ver que alguém está passando perrengue. Se uma irmã está ali passando perrengue, a gente vai tentar fazer alguma coisa. Para ajudar, é claro, sem esquecer que a gente tem que fazer o nosso. Mas eu sempre, eu pelo menos sempre defendi que estava ali para tentar fazer o meu melhor, fazer o meu e ganhar ou perder e isso vai ser consequência da minha entrega. E também é um sinal de respeito às outras competidoras.
A drag brasileira é diferente das outras?
A gente fala muito que a drag brasileira trabalha sem recursos, às vezes, sem cachê, ou com cachês muito baixos. Para todo mundo em início de carreira, isso não acontece só com a drag brasileira, é do artista brasileiro de uma forma geral. Mas, principalmente, na arte drag, que é tem um histórico de segregação e marginalidade e de ser associada a um lugar de marginalidade e deslegitimada como expressão artística. Então, a gente não tem recursos, e não tendo dinheiro, se a gente não se ajuda, a gente não consegue fazer nada, se a gente não trabalha em coletivo, fica muito difícil fazer sozinho.
Cada uma vende uma realidade diferente, umas tem mais ou menos recursos próprios para investir na sua drag, mas independentemente disso, a gente nunca teve um mercado que favorecesse que a gente conseguisse investir o suficiente para conseguir se profissionalizar e elevar o trabalho como artistas profissionais. Não tinha um mercado profissional, não tinha espaço, não tinha para onde olhar, para onde crescer como artista e para onde querem chegar.
(Foto: Fábio Seixo/Divulgação).
Vir desse lugar faz com que a gente funcione. Especificamente do Rio de Janeiro, de onde eu vim, quando eu comecei a me montar, tudo era construído a partir da coletividade e da consciência de comunidade. Começou no Drag-se, que era um coletivo de artistas, depois os concursos: Queens O Concurso, que surgiu no Rio de Janeiro em 2016, quando estava há dois anos montando, concurso para drags iniciantes. Todo mundo que queria começar a se montar e começar a trabalhar como drag no Rio de Janeiro, estava indo pra esse concurso para se lançar, para ser visto naquele palco e experimentar, era um lugar de experimentação, e esse concurso reuniu uma geração de muitos artistas que estavam ali, sem saber onde iam chegar, mas sabendo que queriam experimentar. Lá, haus e famílias drags foram se formando e a comunidade encontrou um lugar para fazer isso, para fazer arte, para ser criativo e para fazer essas experimentações.
Então a gente sabia que todo domingo a gente ia se encontrar ali, a gente brincava que era o nosso culto, a nossa igreja. Todo domingo você podia estar lá, não precisava se comunicar com ninguém a semana inteira. Domingo você sabia que ia encontrar todo mundo na Queen. Era um lugar seguro, de acolhimento, onde a gente podia se reconhecer, se compreender. Tinha muita gente que estava se descobrindo inclusive em sua identidade. Quantas vi pessoas se reconhecendo como pessoas trans.
A gente estava aprendendo tudo isso juntos, se reconhecendo juntos e produzindo juntos. Eu sinto a Queens como um momento muito especial, mas isso se desdobrou em vários outros, como a Drag Star. Hoje a gente tem o Drag Sunset, que é na Ilha do Governador, na zona norte da cidade, que é um movimento também muito semelhante a esse que eu acabei de descrever da Queens nessa essência de coletividade e de comunidade. Isso é um diferencial muito grande que é essa capacidade de, a partir do coletivo, criar com pouco, fazer muito pouco recurso.
Quando a gente começa a ter essa possibilidade, esses acessos, esses espaços na mídia – porque agora a gente está nas mídias sociais, nas mídias digitais, na televisão, nos teatros, nas boates, nas casas de show, nos festivais, nas ruas, no estúdio, nas galerias – a gente está ocupando todos esses espaços e a começa a ter essas oportunidades e as possibilidades de apresentar coisas magníficas é realmente muito mais animador e sem limites.
A gente começa realmente a estar mais motivado, por isso que tem tanta gente agora se inscrevendo para a segunda temporada do Drag Race, todo mundo que eu falo, com todas as cidades que eu passei, todas as famílias drags que eu conheci aqui no Recife, em Maceió, em Teresina, no Sul, em Curitiba, no Norte, em Belém, em todos os lugares por onde eu passei, em São Paulo, em BH, com todo mundo que falo, está todo mundo nessa loucura agora de mandar o seu vídeo e de tentar buscar essa oportunidade. Independente de quais delas sejam selecionadas, cada uma vai estar levando a sua família para lá de alguma forma. Uma vai abrindo espaço para outras.
Lembro que eu falei disso no episódio do reunion: o importante é que a gente consiga fazer. Cada 12 ou 13 queens que participem de uma temporada consiga fazer com que outras das suas irmãs aproveitem dessa vitrine junto com elas. Não esquecer que a gente precisa crescer como coletivo porque a nossa cena não pode depender do Drag Race.
A Miranda esteve na primeira temporada do Global Stars. E a Betina iria se houvesse convite?
Tenho que te dizer uma coisa muito franca e muito sincera em relação ao Global All Stars: muitas de nós voltamos em absoluto burnout daquela experiência. Foi muito exaustivo, uma verdadeira maratona que a gente precisava estar todos os dias acordado muito cedo, com criatividade, carisma e bom humor. A gente tinha que estar 100% todos os dias gravando o dia inteiro, dormindo muito tarde, acordando muito cedo no dia seguinte, sem falar com ninguém, sem falar com a família. Passou por uma pressão que esgotou todas as nossas energias físicas, mentais e emocionais.
Tenho um orgulho muito grande da Miranda só pelo simples fato dela ter aceitado esse convite de emendar uma temporada na outra, sair do Drag Race Brasil e voltar para a Colômbia para gravar o Global All Stars. O tempinho dela entre uma gravação e outra foi produzindo os looks babilônicos que ela levou para aquela temporada, trabalhando. Não parou de trabalhar. A Miranda não teve um pós Drag Race Brasil. Nem na final ela estava lá no palco com a gente pra ver a coroação. Ela já estava trabalhando e gravando quando a nossa temporada era decidida. Então é muita coragem aceitar esse convite.
É muito difícil responder essa pergunta se iria ou não, eu estava realmente muito esgotado. A Miranda foi convidada para o Global antes da nossa temporada estrear. Eu não sabia o que ia acontecer, não sabia o que ia ser do Drag Race Brasil, como eu ia ser visto na televisão, eu só sabia que eu era uma finalista. E isso, claro, era uma grande conquista, estava muito realizado de ter chegado na final. E ter chegado na final para mim já tinha sido uma grande vitória, porque o meu objetivo era aproveitar o máximo daquela plataforma como vitrine para o meu trabalho e alcançar o maior número de pessoas possível com o meu trabalho, que isso me abrisse portas e me trouxesse oportunidades.
Chegar na final já era conquistar o que eu fui buscar. Então, estava realizado, mas estava esgotado. Não sei se eu teria capacidade de entrar nessa maratona de novo. Se o convite viesse, seria muito difícil negar. Eu ia estar lá, me apresentando para RuPaul, para o mundo inteiro me assistir. A tendência seria dizer sim, porque é o sonho também estar no main stage com a Rupaul na minha frente, me avaliando, me julgando e apreciando o meu trabalho, vendo o meu trabalho, me vendo a minha drag, conhecendo a minha drag. Como será que ela ia chamar meu nome?
Claro que tenho curiosidade de saber como seria isso, mas que bom que foi a Miranda, porque ela representou muito bem. Apesar da eliminação precoce, o tempo que ela teve, fez valer a presença. Ela foi a Miranda que a gente conhece: carismática, irreverente, engraçada, com piada na ponta da língua, fez a RuPaul rir várias vezes, entregou looks, shades, tudo o que a gente queria que ela entregasse.
Numa temporada que, pelo menos, deu a oportunidade de ela voltar alguns episódios, dar o nome de novo quando ela voltou. Então, um orgulho enorme da participação da Miranda. E no momento em que o público estava revoltado com o julgamento, revoltado com o fato das queens das franquias que não falavam inglês nativo, tinha toda essa coisa das torcidas criticando a temporada com esse suposto favorecimento da americana, da inglesa e da queen de Down Under.
Então foi muito bonito ver a Miranda lá, eu vibrei muito, mas não sei como teria sido se eu fosse chamada, não sei como teria reagido. Eu teria entrado em pânico, obviamente, ia ficar em choque, provavelmente, ia acontecer igual ao que aconteceu da primeira vez, ia paralisar, petrificar, entrar em pânico, mas depois ia ter que tirar do cu. Força e criatividade pra fazer tudo de novo.
A Bettina tem algum ritual para se montar? Ou é tudo caótico?
Tenho um ritual, mas ele é caótico. Sempre preferi me montar sozinha, eu e o meu espelho. Para mim, sempre foi muito caótico, tive que me maquiar, assim, confiando muito no processo até a coisa dar certo no final. É uma coisa minha também de, por exemplo, editar foto, gostava de sentar no meu computador, esquecer o resto do mundo e entrar no hiperfoco e passar horas e horas editando minhas fotos, como se o resto do mundo não existisse.
O meu processo criativo sou eu comigo mesmo para conseguir concretizar o que estou fazendo. Tem muito processo colaborativo na parte das ideias, mas gosto muito de, no momento, de me maquiar. Se eu estiver conversando e me maquiando ao mesmo tempo, às vezes, tenha muita dificuldade e eu posso demorar. Se estou me maquiando e alguém fala comigo e me interrompe, perco o foco. Sou uma pessoa com TDAH lutando para conseguir começar e terminar um trabalho e chegar no horário.
Com a experiência e com a repetição, com os dez anos de montação, hoje em dia eu já tenho muito mais facilidade. Já consigo, por exemplo, dar uma entrevista ou entrevistar alguém me montando, conversar. Até no Drag Race, naqueles momentos de conversa no espelho, nos primeiros episódios tinha que parar de me maquiar para falar e depois continuar. Depois, no final, já estava me maquiando e falando. É muito questão de prática. Mas tenho esse processo de precisar me silenciar antes de começar a organizar a minha maquiagem na bancada, antes de virar um caos, preciso de um método antes de virar, porque assim, no final da maquiagem e no final do processo a bancada está toda revirada. Todo o meu processo criativo vem primeiro de uma introspecção.
O momento de introspecção, tanto na hora que estou criando uma performance ou quando estou idealizando um look, tem um processo de introspecção sozinho, eu comigo mesmo, com meus pensamentos ou no computador nas referências, ouvindo as músicas. Depois dessa introspecção, chega aquele momento de ir para a prática e botar para o mundo. Em seguida, posso começar a trocar ideia e meu marido participa também e a coisa coletiva começa a acontecer na troca. Mas preciso desse momento de introspecção, tanto para me maquiar, quanto para depois me entregar para o caos.
Leio tarô, então tenho o hábito de toda vez que vou me apresentar, tiro uma carta de tarô, porque já sei qual vai ser a vibe, ou então me alerta para alguma coisa que tenho que ficar atento. Nas gravações do Drag Race, todo dia antes de ir para o estúdio, tirava uma carta, e, por conta disso, conseguia, às vezes, até, prever alguma situação. Isso me ajuda muito, porque me dá um momento de meditação sobre alguma questão, sobre alguma coisa que preciso trabalhar naquele dia, e um dia ainda pretendo divulgar todas as cartas que tirei a cada dia de gravação porque tenho tudo isso anotado.
Para encerrar, você conhece e o que acha das drags da cena do Recife?
Conheci a cena do Recife recentemente, depois do Drag Race, quando eu vim participar do concurso Drag Bomb como jurada. É produzido e idealizado por drags locais. Foi uma forma muito legal de conhecer a cena, porque é um pouco parecido com o que vivi no Rio de Janeiro também, nas cenas de concurso de lá, e a forma como a gente se organizava lá para produzir eventos, pude viver isso aqui acompanhando a produção do Drag Bomb e participando como jurada do concurso.
Foi muito interessante poder ver o processo de produção do evento, compartilhar com as outras drag queens, estar num evento feito por drag queens, para drag queens competirem, com drag queens no júri. Conhecer a cena a partir dessas internas de produção e realização desse evento foi muito interessante porque tive a oportunidade de conhecer as pessoas também por trás das drags, conhecer cada uma daquelas artistas. Conheci a Mayven Hoax, a Makuza, a Lea Farsaid, a Allura Nox, a Condessa Cabalista, algumas que já conhecia por Instagram, já conhecia o trabalho.
Mas conhecer pessoalmente e participar desse dia de concurso, que foi um momento de celebração da arte drag também, porque o concurso ocupava um evento que não era um evento drag. O evento que sediou o Drag Bomb foi a Super Con. Trazer um concurso drag para esse evento que tá fora da nossa bolha, de quem consome art drag em boate, até em teatros e no Drag Race é muito legal, porque a gente entra em contato com outros públicos. E foi muito legal ver como a cena de Recife dialoga muito com a cena carioca. Encontrei muitas afinidades aqui. E que, na verdade, é uma coisa que confirma experiências anteriores que eu tive em Recife.
(Foto: Isabella Bonanni/Divulgação).
Quando estava na época de faculdade, quando era fotógrafo, eu vim para cá para fazer um trabalho sobre o movimento Manguebeat. Vim conhecer os músicos dessa cena e tive a oportunidade de conhecer os músicos da Mestre Ambrósio ou de bandas daqui do Recife que estavam começando um trabalho de resgate da cultura regional e dos ritmos tradicionais de Pernambuco, mas, ao mesmo tempo, com uma leitura contemporânea e futurista, também do Chico Science, que também é um dos meus grandes ídolos.
Encontrei muitas afinidades entre o Carnaval do Recife e o Carnaval do Rio de Janeiro, as pessoas fantasiadas na rua no Carnaval de Olinda. Então me conecto todas as vezes que pisei aqui nesse solo, fiz conexões tanto no campo das ideias, das artes, da criatividade, quanto nos afetos, nas identificações e nas amizades. Então, tenho o Recife no meu coração e estou muito feliz de reencontrar essas amigas, porque algumas das mesmas queens que estavam no Drag Bomb, tanto produzindo o evento quanto competindo, performaram no Club Metrópole, que é uma casa que eu já tive o prazer de conhecer também, que é incrível e enorme.
(Foto: ISabella Bonanni/Divulgação).
Leia mais entrevistas
- Um papo com Jaloo: “Tudo é um gozo. Se estou conseguindo me manter aqui é porque, de alguma forma, estou gozando”
- Um papo com Hellena Maldita: “o mais importante foi ser porta-voz das pessoas positivamente vivas”
- De fotógrafa a finalista do Drag Race Brasil, Betina Polaroid celebra as cenas drags pelo país
- Kátia Mesel é homenageada no Janela de Cinema: “Minha obra estava adormecida, e agora está pronta para o mundo”
- Um papo com Angela Ro Ro: “Tenho muito amor à vida”