Watchmen: Uma obra misógina que beira o sadismo

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SOCIEDADE SECRETA AMERICANA
Com uma série de acidentes de percurso, filme manipula importantes fatos históricos e apresenta misoginia que beira o sadismo sem limites

Por Luiza Lusvarghi

O império global formado sob a égide dos Estados Unidos após a Queda do Muro, já foi comparado à Pax Romana. Embora a ação de Watchmen, o filme, transcorra durante a Guerra Fria, e a civilização egípcia seja evocada por Ozymandias (Matthew Goode), o Hitler pós-moderno do filme, como modelo, a associação com o Império Romano é quase imediata. E mais uma vez cabe aos americanos decidir o que fazer com o planeta ameaçado pela bomba e pelos russos. É como se não existissem outras nações. Os super-heróis poderiam muito bem ser considerados como os deuses do Olimpo. O que deveria ser uma crítica, entretanto, acaba soando como um tributo.

A abertura do filme fala de um período de decadência para os super-heróis, agora impossibilitados de exercer sua função de justiceiros pela lei Keene, nos Estados Unidos. Os únicos em ação foram cooptados pelo governo americano – são o Dr Manhattan (Billy Crudup), uma espécie de acidente genético, e o Comediante (Jeffrey Dean Morgan), um psicopata que, ao longo de sua carreira, foi muito útil ao governo americano. O filme manipula uma série de fatos históricos de maneira aleatória. O Dr. Manhattan ajuda Nixon a vencer a guerra do Vietnã, e ele se reelege. Mas essa questão não fica clara no filme, mesmo quando o Dr. Manhattan aparece, ao lado do Comediante, pulverizando pessoas em pleno conflito, e a crítica ao estado totalitário americano soa falsa. O mesmo ocorre no funeral da morte do Comediante, ao som de “The Sounds of Silence”, canção de Paul Simon, que foi sucesso da dupla Simon and Garfunkel em 1964, no filme A Primeira Noite de Um Homem, e que embalou gerações sempre associada a uma postura anti-belicista. Não é bem o que se vê ali.

As mulheres merecem um capítulo à parte. A misoginia está presente em todas as obras de Moore, mas normalmente elas surgem na forma de um personagem, e são justificadas por um contexto de fragmentação – ditaduras opressivas, o desmantelamento da família pela guerra ou pela repressão, como em V de Vingança. Mas aqui ela se reveste de tons de sadismo. Praticamente não existem mulheres de verdade em Watchmen. A mãe de Rorschach (Jackie Earle Haley) é uma mulher depravada, que o trocava por homens – daí ele ser tão beligerante e um assassino frio. Sally Jupiter (Carla Gugino) é uma alcoólatra de baixo autoestima que se permite ser estuprada pelo comediante. Silhouette (Apolonia Vanova) é morta por sua “vida viciosa”. Janey Slater (Laura Mennel) é uma senhora de meia idade ressentida; e a mocinha, Laurie Jupiter/Silk Spectre II (Malin Akerman) se é que se pode falar nestes termos, é um mero objeto sexual nas mãos do Dr. Manhattan, que ao final se “sacrifica” para salvar a humanidade.

Mesmo porque o único mocinho do filme, o Coruja, o Nite Owl (Patrick Wilson), baseado num antigo herói da década de 1930, o Besouro, só consegue “chegar lá” fantasiado, e não parece apto a enfrentar nenhum problema maior do que brincar de super-herói a bordo de sua nave. A única mulher de imagem positiva no filme é a garotinha que é jogada aos cães antes de se tornar uma mulher. Sem falar no casting: Sally Júpiter tem praticamente a mesma idade de sua filha Laurie, e não há maquiagem que dê jeito nisso.

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A série Watchmen, série de 12 edições, criada por Alan Moore para a DC Comics a partir de personagens antigos da HQ, é considerada revolucionária por diversos motivos: conquistou vários Prêmios Kirby e Eisner, além de ter sido a única graphic novel a ganhar o tradicional Prêmio de ficção cientifica Hugo, voltado à literatura. Watchmen também é a única história em quadrinhos presente na lista dos 100 melhores romances eleitos pela revista Time desde 1923. As obras de Moore anteriormente vertidas para o cinema apresentam resultados desiguais: Do Inferno (2001), estrelada por Johnny Depp, mostrando uma outra versão para Jack O Estripador, A Liga Extraordinária (2003), com Sean Connery, Constantine (2005), com Keanu Reaves, baseado em Hellblazer e finalmente, V de Vingança (2006), com Hugo Weaving e Natalie Portman. A primeira e a última são fantásticas e instigantes parábolas: Do Inferno, uma autópsia da sociedade vitoriana, nas palavras do próprio autor, e V de Vingança, uma fantasia anarco-futurista que nos remete ao fascismo, com seus campos de concentração. A mais recente adaptação de uma obra de Moore para o cinema é Watchmen, dirigida por Zack Snyder, de 300, com roteiro do diretor, junto com Alex Tse.

Moore, segundo consta, não gosta de ser adaptado para o cinema e nunca se envolve na produção. Tampouco participa de eventos de HQ. Desestoricizada, sua interessante abordagem que mescla ficção cientifica, política, sexo, utopias, uma certa crítica social, aliada a alguns clichês literários romanescos, revela-se como um instrumento que pode servir a vários senhores. No caso de que tratamos, há uma sofisticada produção cinematográfica que recria com perfeição o clima sombrio da graphic novel, mas que à guisa de ser pós-moderna e crítica, parece ser mais a elegia do ovo da serpente ao qual aludia Bergman em seu filme homônimo, em que analisava de que forma a vigilância se introduziu na vida real das pequenas vilas alemãs, estimulando-os ao comportamento que assumiriam depois com o crescimento do regime de terror da Alemanha nazista. Só de que desta vez, essa vigilância se dá de forma consentida, sob a fantasia do entretenimento.

WATCHMEN
De Zack Snyder
[Waner Bros., 2009]

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Luiza Lusvarghi é doutora em comunicação pela Universidade de São Paulo e autora do livro De MTV à Emetevê (Editora de Cultura)