Foto de capa: Felipe Bessa
Com elementos típicos de um baile na roça, as quadrilhas são parte fundamental das festas juninas do Nordeste brasileiro. A tradição tem origem nas danças de salão das cortes europeias, e foi adaptada no Brasil com influências regionais, indígenas e africanas. Fato é que elas são o ponto alto das festas de junho e julho que festejam os santos Antônio, João, Pedro e Sant’Ana. São também o momento mais importante do ano para milhares de pessoas, em sua maioria moradores de comunidades e bairros periféricos do Recife e Região Metropolitana.
Inicialmente, as quadrilhas eram uma brincadeira de família, bem íntima, com poucos integrantes e restritas a pequenas comunidades, porém ao longo dos anos elas cresceram e hoje podem reunir até mais de 200 pessoas, além de movimentarem um orçamento expressivo. Segundo o Ministério do Turismo, as festas populares mobilizaram mais de 21,6 milhões de pessoas em 2024.
Anderson Andrade, diretor artístico da Quadrilha Origem Nordestina, atua na elaboração do espetáculo e coordena as várias vertentes da trama, como a dança, música, atuação, texto dramático e figurinos. “Estou no São João desde 1994, então não sei como seria minha vida sem festa junina, e sem quadrilha junina. É parte do que sou, me constituiu como pessoa e como artista”, disse o diretor.
“A dedicação é de seis meses, construindo o espetáculo. Porém, assim que termina um ciclo, já iniciamos a construção intelectual do próximo São João”, explicou. A Origem Nordestina surgiu no Morro da Conceição e é uma das inúmeras quadrilhas que ficam situadas em comunidades do Recife. “A igreja do Morro participa ativamente. O marketing da igreja é o marketing da quadrilha e todos os anos o padre celebra uma missa para a quadrilha antes do desfile de estreia. A maioria dos nossos brincantes são da comunidade”, destacou Anderson. São aproximadamente 200 pessoas trabalhando na Origem Nordestina e um investimento próximo de R$ 300 mil reais.
As quadrilhas juninas são fruto da união de dezenas de pares que se juntam para dançar forró em torno de uma temática. Em geral, a dança simula uma festa de casamento matuto. Variando do número de componentes e da organização da apresentação, os quadrilheiros cumprem papéis específicos, como padre, noiva e noivo.
Para Elielson Coelho, 40, coreógrafo da Quadrilha Junina Amigos do Furacão, do bairro da Linha do Tiro, Zona Norte do Recife, a organização das quadrilhas é uma atividade dispendiosa e ao mesmo tempo prazerosa. “É um prazer imenso participar dessa festa, é uma das festas populares mais gostosas de brincar. No início do ano, já procuro pensar no tema pra quadrilha. Quando passa o carnaval, já começamos a nos dedicar para organizar o grupo”, afirmou.

Quadrilha é comunidade
Elielson conta que a comunidade participa ativamente das ações da quadrilha. “Eles apoiam muito, ajudam como podem. Levam o cenário, costuram a roupa, vão junto no ônibus para os desfiles. E não ganham um centavo por isso. Eles tão sempre nos ajudando. Nós fazemos um bingo para ajudar nos custos e todos os comerciantes, donos de barracas de lá, chegam junto com o prêmio, as pessoas compram”.
O coreógrafo explica que o dia do desfile é sempre movimentado, permeado de inúmeros contratempos. “O dia que a quadrilha vai dançar é sempre uma correria, a roupa rasga, esquecem o sapato, o chapéu desaparece. Até chegar no arraial é uma loucura, mas é muito gratificante”, disse. Na Amigos do Furacão são 54 pessoas trabalhando, 40 dançando em quadra e 12 apoiando o arraial e o investimento anual é de R$ 20 mil.
Anderson, da Origem Nordestina, concorda e destaca a tensão no dia para os quadrilheiros. “O dia da apresentação é sempre de muito trabalho, tensão com o horário, muitos componentes trabalham em escala 6×1 e não conseguem folga, então a tensão até todos chegarem é grande. Também tem o cuidado com cada detalhe de figurino e coreografia, avisos, lembretes, motivação. É uma descarga de adrenalina surreal. Quando a apresentação encerra, dá tudo certo, é como se tomasse novamente o controle do corpo, que fica em suspensão nos 25 minutos de apresentação”.
Em cada quadrilha, existem uma gama de profissionais envolvidos. Além dos dançarinos tem os coreógrafos, os projetistas que são os que criam todo o espetáculo, os marcadores, os puxadores, maquiadores e o pessoal do apoio técnico. Existem inúmeros festivais e torneios onde elas disputam premiação em dinheiro e reconhecimento ao longo do período junino.
Nos festivais, as agremiações têm, geralmente, entre 25 e 30 minutos para se apresentarem ao público, numa estrutura que lembra os desfiles de escolas de samba no carnaval. No Recife, as apresentações costumam acontecer em ginásios, escolas ou em parques, como o Sítio Trindade, em Casa Amarela, na Zona Norte.
Leila Nascimento é diretora artística e coreógrafa da Quadrilha Junina Raio de Sol, de Águas Compridas, em Olinda, e desde pequena acompanha de perto tudo o que é realizado na quadrilha, já que estava lá como aluna no ano de sua fundação. “Minha história de vida se mistura com minha vivência na quadrilha. Inclusive, minha profissão. Danço desde a fundação, em 1996. E passo o ano inteiro conectada com esse fazer. Além da Raio de Sol, presto assessoria e ministro oficinas para outras quadrilhas ao longo do primeiro semestre”, disse.

“Minha rotina profissional está alinhada com a agenda da quadrilha, iniciamos as ideias do ano seguinte ainda em junho/julho, no segundo semestre iniciamos a pesquisa de tema e pesquisa das músicas. Em janeiro iniciamos as coreografias e os ensaios”, relatou Leila. São 120 dançarinos envolvidos na Raio de Sol, 30 pessoas da produção e, esse ano, 40 crianças. Cada figurino custa em média R$1.200. E o valor total investido ultrapassa R$ 150 mil.
Fábio Andrade, 50, presidente e marcador da Quadrilha Junina Lumiar do bairro do Pina, Zona Sul do Recife, confirma que o São João dura o ano todo para as quadrilhas. “Não temos intervalo, quando encerra um ano se inicia o outro São João. Em agosto encerra 2025 e começamos a pesquisa para 2026”, afirmou.
Fábio dança quadrilha desde 1985 e faz parte da Lumiar desde 1996. “A Lumiar nasceu no Pina e hoje temos componentes de toda a Região Metropolitana e até de outros Estados. A quadrilha é aberta, e a comunidade do entorno é ativa na construção do São João”. São, em média, 200 pessoas envolvidas na Lumiar.
Para o presidente da Lumiar, a reunião dos brincantes em torno da quadrilha se dá pela paixão de cada um com essa cultura. “No ambiente da quadrilha você consegue encontrar conforto, a superação das dificuldade vem através desta alegria, deste amor. Mesmo às vezes sendo tenso pela competição, é um prazer intenso. A quadrilha é um ambiente de harmonia, de brincadeira, de relação com uma paixão”, garantiu. A Lumiar, inclusive, foi a grande vencedora do concurso de quadrilhas deste ano no Sítio Trindade.
“A força do coletivo é o que mais me encanta. É incrível como conseguimos juntar tanta gente diferente em torno de um objetivo, há 30 anos, com espetáculos inéditos e investimento dos próprios quadrilheiros”, conta Leila Nascimento ao refletir sobre o que mais lhe dá felicidade na brincadeira.
Já para Elielson Coelho, da Amigos do Furacão, o encanto da quadrilha junina está em celebrar com os amigos em torno da arte. “O que me encanta é promover arte, pular, dançar, falar com o público. Estar ali presente e fazer uma festa mesmo”, disse.
De acordo com Anderson Andrade, da Origem Nordestina, além da festa, a tradição das quadrilhas juninas mantém um importante componente social. “Vale muito a pena. A cultura popular é fascinante, forma cidadãos, profissionais e artistas. Financeiramente não existe retorno satisfatório, mas a sensação de promover cidadania, de resgatar vidas das drogas e prostituição, por exemplo, para dedicá-las a arte, fazem tudo valer a pena”.
O diretor artístico reflete sobre o caráter de empoderamento da identidade que a festa suscita. “Tenho muito orgulho de ser nordestino. Na quadrilha esse orgulho pode ser vivido em arte, e isso é fascinante. É a possibilidade de mostrar ao mundo nossa potência, nossa verdade, nos mostrar como somos e como queremos ser vistos. É o acesso a uma arte ordinária, necessária, que nas mãos de gente sem formação, trabalhadores braçais, ganha contornos extraordinários. Isso vira motivo de vida”.

Forró dando o brilho
A consolidação das quadrilhas como folguedo popular deve-se, sobretudo, ao fato do forró, em meados do século 20, entre as décadas de 1930 e 1960, ter sido incorporado às festas juninas. A popularidade do trabalho de artistas como o mestre Luiz Gonzaga ajudou as quadrilhas a se tornarem uma marca cultural do Nordeste.
Com o passar dos anos, a festa naturalmente foi recebendo inovações, adaptando novas linguagens e construindo espetáculos cada vez mais sofisticados e influenciados pela cultura pop, tanto local quanto nacional. Hoje, além das quadrilhas tradicionais, mais próximas das raízes desse folguedo, existem as quadrilhas estilizadas, com figurinos e cenários mais luxuosos e temas contemporâneos. Por exemplo, há pouco tempo, o jovem estudante baiano Yago Savalla, 16, viralizou nas redes sociais ao performar “Homem com H”, de Ney Matogrosso, em uma apresentação da quadrilha da sua escola. O vídeo com a apresentação ultrapassou a marca de quatro milhões de visualizações somente no TikTok e foi elogiado pelo próprio Ney em comentário na postagem do Instagram.
O movimento junino é tão forte nos estados do Nordeste que foram criadas federações e ligas que representam o interesse das quadrilhas no âmbito federal, estadual e municipal. Em Pernambuco, a Federação de Quadrilhas Juninas de Pernambuco (FEQUAJUPE) foi organizada no encargo de várias missões que incluem pautas como a discussão de políticas públicas para o segmento, além de participar e contribuir com eventos nas principais atividades das quadrilhas, como o Seminário de Quadrilhas Juninas de Pernambuco, o Workshop Junino de Jurados, o Pré-Junino (maior prévia junina do país), e o Festival Pernambuco Junino.
Além da FEQUAJUPE, Pernambuco também conta com a Liga das Quadrilhas Juninas de Recife (LIQUAJUR) que surgiu em 2017 a partir de uma inquietação do Movimento de Quadrilhas Juninas do Estado. “Há muito tempo as quadrilhas lutavam por uma subvenção municipal como tem no Carnaval. As quadrilhas do Recife entenderam que para ganharem essa subvenção, seria mais fácil elas se organizarem a nível de município”, conta Roberto Carlos, Presidente da LIQUAJUR.
“No primeiro ano, 2017, já conseguimos a subvenção para as quadrilhas e em 2018 o prefeito à época, Geraldo Júlio, assinou o decreto que concede anualmente um aporte financeiro para as quadrilhas juninas até hoje”, complementou. A Liga participa das discussões políticas com os governos federal, estadual e municipal para a criação de políticas públicas para as quadrilhas juninas do Recife. São 25 quadrilhas associadas na Liga, entre infanto juvenis e adultas.
“Para as quadrilhas é importante essa representação e esse diálogo com os governos e com as empresas que trabalham no São João. A Liga é um movimento organizado em prol de políticas, festivais e editais para o progresso da cultura. É importante que cada grupo tenha uma instituição interessada em representá-la frente a esses poderes”, concluiu Roberto.
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