RIO DOCE 10 Foto de Nathalia Tereza
(Foto: Nathalia Tereza/Divulgação).

Rio Doce: A periferia olindense em cena no primeiro longa de Fellipe Fernandes

O diretor pernambucano e o ator Okado do Canal compartilham o que cada um trouxe de inspirações e de referências para o filme que aborda tensões de classe e questiona o modelo de masculinidade vigente

“Desde pequeno eu percebia que as histórias que eram contadas na televisão, nos filmes, nas novelas, eram muito distantes das histórias que eu via”, foi assim que Fellipe Fernandes resumiu, em entrevista à Revista O Grito!, as vontades e inquietações que o movem enquanto realizador audiovisual. Rodeado por uma família grande, ele cresceu ouvindo muitas histórias e levá-las para o cinema se tornou um desejo urgente. É justamente seguindo este caminho que ele estreia seu primeiro longa-metragem, Rio Doce. O título é uma referência ao homônimo bairro do subúrbio de Olinda, onde viveu boa parte da sua infância.

Protagonizado pelo ator, rapper e b-boy Okado do Canal, que também participou da conversa com O Grito!, o filme chegou esta quinta-feira (20) às salas brasileiras e projeta na tela um retrato vivaz e caloroso do bairro olindense e das pessoas que lá habitam, rompendo com uma ideia excludente e hegemônica do território como longínquo e perigoso. Na verdade, o diretor dá continuidade a anseios expressos desde seu primeiro e premiado curta, O Delírio é a Redenção dos Aflitos (2016), ambientado em Jardim Atlântico, bairro vizinho com o qual ele também tem uma estreita relação.

“A partir do momento que eu comecei a trabalhar com cinema, sempre fui girando em torno desses espaços e das pessoas que habitam esses espaços. Então, quando eu fui fazer meu primeiro longa, era isso que eu queria colocar ali: todas essas referências que me interessavam da paisagem. Não só a paisagem enquanto imagem mesmo, né, [que é] a paisagem urbana, mas a paisagem humana também”, explica o pernambucano.

Para ele, a imagem do bairro como um ambiente inseguro e distante nunca fez sentido. Por isso sua dedicação em construir uma outra narrativa, em consonância com a vivência do território pelas mais de 40 mil pessoas que lá vivem. “É o bairro mais populoso de Olinda. Ao mesmo tempo que tem um monte de gente que olha aquilo ali como perigoso, tem muito mais pessoas que olham aquilo ali como casa”, reflete.

A periferia em perspectiva

Mas o longa-metragem não fica restrito a Rio Doce e também estabelece contato com outros pontos da Região Metropolitana do Recife. Seja em um passeio pela Conde da Boa Vista, no Centro, ou se deslocando para a casa do falecido pai, situada em um bairro abastado da Zona Norte recifense, o fato é que Tiago, protagonista vivido por Okado do Canal, sempre está em trânsito pelo espaço urbano. Sobre essa escolha do roteiro, Fernandes enfatiza: “A gente só entende o que é a periferia quando a gente bota em perspectiva com os outros espaços da cidade, da metrópole.”

Aliás, para ele, a imagem de Rio Doce enquanto periferia é uma construção recente, para a qual só foi despertar no começo da vida adulta, quando ingressou na faculdade. “Foi aí que eu comecei a frequentar mais Recife e entender o que era Rio Doce, o que era Jardim Atlântico, o que era Olinda, a partir dessa perspectiva de Recife. Então, comecei a entender essa ideia de periferia. E aí, nesse processo, eu estranhava muito esse olhar que o povo tinha. Achavam muito longe, perigoso né, que é a imagem que o bairro tem na mídia.”

Fellipe Fernandes
Fellipe Fernandes foi assistente de direção em obras audiovisuais como Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles, e Piedade (2019), de Cláudio Assis. (Foto: Divulgação/Vitrine Filmes).

“A discussão da paternidade faz parte da identidade da gente”

Enquanto desbrava a paisagem urbana, o longa transita por temas delicados e ainda caros a nós enquanto sociedade como racismo, conflitos de classes e modelos de paternidade e masculinidade. Na trama, as discussões materializam-se em uma carta recebida por Tiago, a partir da qual ele descobre a identidade do seu pai biológico, uma figura ausente em toda sua vida, e entra em crise com sua própria identidade de homem preto periférico e pai de uma menina de 4 anos.

Para Okado, a identificação com o personagem foi imediata. “Como Tiago, eu também sou filho de mãe solo, de uma relação mal resolvida com meu genitor”, confessa. A partir das semelhanças entre ficção e realidade, ele compartilhou sua história com o diretor. “Daí, tipo, eu fui conseguindo mapear algumas coisas de Tiago que cabiam para mim e algumas coisas minhas que cabiam para Tiago também”, revela ele que participou ativamente da construção do protagonista, imprimindo nele suas próprias inspirações, referências e nuances.

Fellipe conta que, de 2014, quando escreveu o primeiro argumento, até 2019, quando o longa foi gravado, muita coisa mudou. Apesar de o roteiro inicial já propor uma discussão sobre paternidade, o fato de ele ter se tornado pai ao longo do processo foi um divisor de águas para a história. “A questão complexifica um pouco, porque quando a gente se torna pai, a discussão da paternidade não é mais externa, ela faz parte da identidade da gente.”

Assim, o longa investiga o gatilho de reflexão do personagem dividido entre os modelos de masculinidade e feminilidade que estão postos. “[Isso foi] uma coisa que Okado trouxe: o pai que ele [Tiago] quer ser não tem a ver com o pai, tem a ver com a mãe que ele teve. Ele quer ser um pai para a filha a partir do que a mãe dele foi para ele, então isso tudo já mexe muito com as estruturas sociais”, avalia o diretor.

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O ator, rapper e b-boy Okado do Canal dá vida a Tiago. (Foto: Divulgação/Vitrine Filmes).

Raça e classe também em discussão

Ainda segundo Fellipe, a proposta do filme não é entregar respostas, mas jogar luz na forma como essas questões estruturais – políticas e sociais – podem se relacionar de forma complexa com as nossas individualidades e sensibilidades. “E isso me interessa muito dentro desse contexto de periferia, porque isso é onde eu cresci e eu vi essas coisas todas existindo e ebulindo na cabeça das pessoas ao redor, mas sem serem nomeadas”, pontua.

“Muitas vezes quando a gente fala de questões psicológicas assim, complexas sabe, a gente fala isso num lugar de uma classe mais abastada, no lugar da elite. E essas mesmas questões estão presentes também para todo mundo. É da condição humana. E aí como se lida com ela é que muda muito a partir de uma classe para outra, de um contexto social, de um contexto político para outro”, observa.

A potência artística da periferia

Em meio a tudo isso, Rio Doce mergulha ainda na profusão artística da cultura hip-hop, a qual Okado do Canal, enquanto rapper e b-boy, está profundamente ligado. Em alguns momentos do longa, somos apresentados a imagens de arquivo do próprio Okado que remetem também a um passado do protagonista Tiago nessa arte urbana e periférica. De acordo com o ator e o diretor, esse contorno do personagem foi construído coletivamente por ambos, a partir, justamente, da vivência e da bagagem do multiartista.

“Tiago era uma pessoa que pensou em ser artista em algum momento da carreira, mas a vida levou ele para outros caminhos”, explica o ator. “E daí eu ficava sempre num castelo assim né, quantas vezes eu já não passei de ser realmente um Tiago, de jogar tudo para cima e trabalhar com alguns trampos que talvez eu não estaria satisfeito”, revela Okado que também vem da periferia: é a comunidade do Canal, localizada no bairro do Arruda, Zona Norte do Recife.

Sobre o processo de preparação para o papel, o rapper, que já acumula outras experiências na atuação, comenta que Rio Doce teve um gostinho especial. “Foi um processo bem gostoso de revisitar algumas memórias e até mesmo de me permitir também: me permitir chorar, me permitir sorrir. No hip-hop a gente tem muito essa questão de ser durão, de ser ‘posturadão’ assim, e em meio a esse processo de Rio Doce, me vendo em Tiago, emprestando o corpo para ele, eu consegui meio que ter esse contato com outros homens sensíveis.”

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