Minha Coisa Favorita É Monstro Livro 2
Emil Ferris
Quadrinhos na Cia/Companhia das Letras, 424 páginas, R$ 189,90
Tradução de Érico Assis
O Livro Dois da saga Minha Coisa Favorita É Monstro é uma dessas HQs que não dá para ficar lendo aos pedaços. Como uma boa série dos canais de streaming, dessas que maratonamos todos os episódios num final de semana, cada página virada é um convite a seguirmos na leitura da deslumbrante história criada pela quadrinista Emil Ferris sobre a jovem de dez anos Karen Reys, vivendo na cidade de Chicago em 1968.
Essa sequência, lançada no Brasil pela Quadrinhos na Cia, é tão empolgante quanto o volume inicial ganhador de três prêmios Eisner e do Fauve d’Or do Festival de Angoulême. Ela mergulha mais fundo nos elementos que a consagraram: uma HQ cuja inspiração vai de obras de arte clássicas a capas de revistas populares de terror e mistério e onde crimes se misturam com histórias sobre o nazismo e o holocausto, sobre bullying e personagens estranhos e bizarros, incluindo a própria garota que se retrata como uma menina lobisomem.
Emil Ferris era uma ilustradora desconhecida, cuja vida mudou completamente quando, em 2001, aos 40 anos, ficou paralisada por causa de uma infecção viral. Desenhar de uma forma obsessiva, contudo, lhe devolveu a mobilidade e daí surgiu a HQ desenhada totalmente com caneta esferográfica e em formato de diário íntimo. O impacto de seu trabalho foi tamanho que ganhou elogios rasgados do criador da HQ Maus, Art Spiegelman que a considerou “uma das quadrinistas mais importantes do nosso tempo”.

O segundo volume de Minha Coisa Favorita é Monstro retoma a história de Karen que continua obcecada pela morte da sua vizinha Anka, uma sobrevivente do holocausto. Usando um impermeável de detetive, Karen não desiste de desvendar o que aconteceu. Por conta de suas investigações, Karen, junto com seu irmão, o não muito confiável Dezê, se envolve com o submundo do crime ao mesmo tempo em que vive uma transformação, a descoberta de sua atração por meninas.
A Chicago retratada por Emil é uma cidade sombria, assombrada por fantasmas do passado, mas onde, mesmo cercada das criaturas monstruosas que ela ama, Karen, com sua imaginação criativa, encontra beleza e consegue distinguir os monstros maus dos monstros bons. Não precisa dizer que o olhar da personagem se confunde com o olhar de sua criadora, reforçado pela estrutura narrativa de diário íntimo em que as emoções são a matéria prima da trama na qual o desenho inspira o texto ao mesmo tempo que o texto inspira os traços e as figuras que vão sendo compostas.



Minha Coisa Favorita é Monstro além do cativante enredo policialesco, neste segundo volume ganha fôlego e se transforma em uma história de iniciação, com a entrada de Karen na vida adulta. Os personagens ganham um contorno mais político, mais existencial e consequentemente mais trágico. Diante de um mundo que lhe parece incompreensível e sem sentido, Karen vai colocando no seu diário tudo que ela apreende, tanto da cultura popular quanto das belas artes, como possibilidade de reposta para suas angústias e mudanças do seu corpo e do seu espírito.
Graficamente Minha Coisa Favorita é Monstro é de uma vitalidade empolgante com os desenhos, no decorrer da história, alternando quadros que se aproximam do mero esboço a quadros sofisticados de uma fineza e delicadeza vertiginosas. Ferris estabelece diálogo direto com artistas renascentistas ou contemporâneos como Edward Hopper e, com a mesma desenvoltura, passeia por referências da cultura pop, contudo, não apenas como citações, mas como elementos dramáticos da sua história.
A leitura dessa HQ monumental, invariavelmente nos coloca diante dos horrores do mundo contemporâneo quando constatamos que sua autora, o tempo inteiro, nos chama a atenção para as criaturas aterrorizantes da realidade e a necessidade de enfrentá-las. Não é à toa que em suas reflexões Karen no diz que “a melhor maneira de ser um monstro forte que derrota o mal é fazer arte e contar histórias”.
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