Mickey 17
Bong Joon-ho
EUA, 2025. 2h17. Ficção Científica/Drama. Distribuição: Warner
Com Robert Pattinson, Naomi Ackie, Steven Yeun
A narração em off é uma estratégia cinematográfica melindrosa. Há filmes nos quais sua presença é marcante, condizente com a proposta pela qual o roteiro trata seus personagens; como imaginar Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese, sem as elucubrações mentais do atordoado Travis Bickle, interpretado por Robert De Niro? Porém, se utilizada de forma displicente, com o objetivo estritamente expositivo de explicar ao espectador acontecimentos da história, a voz off denota a incapacidade do roteiro em dar conta imageticamente do que apresenta ao público. Lamentavelmente, este é o caso de Mickey 17 (2025), a aguardada nova produção do cineasta sul-coreano Bong Joon-ho, vencedor do Oscar por Parasita.
Com uma introdução prolixa que busca conceitualizar o universo do filme, a trama acompanha como o jovem Mickey Barnes (Robert Pattinson) se tornou um Descartável, nome dado aos que se voluntariam para tarefa bem específica na missão de colonização do inóspito planeta Nilfheim: estar disposto a morrer e ser regenerado (ou “reimpresso”) quantas vezes forem necessárias para o avanço dos experimentos no cosmos. Após o Mickey número 17 ser dado como morto, a tripulação imprime o subsequente Mickey 18: o imbróglio está feito, já que a legislação vigente prevê a morte daqueles que se tornam Múltiplos.
Bong Joon-ho, diretor de repertório filmográfico notável, revisita elementos comuns à sua obra: aqui estão a sátira aos poderosos, tema presente desde o seu primogênito curta-metragem Incoherence (1994), o humor nonsense de Cão Que Ladra Não Morde (2000), a distopia de um mundo glacial de Expresso do Amanhã (2013) e até mesmo o discurso pró-sustentabilidade e em defesa da vida animal, questões centrais de Okja (2017). Neste terreno temático familiar, o diretor evidencia, em cenas pontuais, o olhar criativo por trás da câmera que o destaca como um dos maiores realizadores contemporâneos. Mesmo assim, o sentimento onipresente é de uma narrativa truncada que se refugia na veia cômica para maquiar a ausência de conteúdo substancial.

O caráter burlesco da obra não é o problema em si; meu entrave com a produção reside na dosagem errada de sequências que pairam, indecisas, entre a tensão dramática e o alívio cômico (que se torna regra ao longo do filme). Explicitamente inspirado em Donald Trump, o vilão Kenneth Marshall (Mark Ruffallo) exala a extravagância ridícula do presidente estadunidense, repetindo gestuais conhecidos do republicano e o mesmo bronzeado cor de cenoura. Provoca sorrisos nos primeiros minutos, mas logo cai numa caricatura pouco inspirada. Com o desafio de interpretar dois Mickeys de diferentes temperamentos, Robert Pattinson é convincente ao transitar entre a insegurança do Mickey 17 (ainda que a composição vocal para o personagem soe tão artificial que tive a impressão de assistir a uma esquete do Saturday Night Live) para a malícia característica ao Mickey 18.
Alguns personagens secundários parecem soltos demais à engrenagem narrativa proposta por Bong, principalmente as mulheres: o desenvolvimento da Nasha (Naomi Ackie), namorada do protagonista, é tão confuso quanto o modo como o roteiro notabiliza e, subitamente, renega a tripulante Kai Katz (Anamaria Vartolomei) do enredo. Em meio ao desarranjo narrativo, Bong Joon-ho insere referências a diversas obras de ficção científica, de Duna (2021) a Alien: O Oitavo Passageiro (1979). A manifestação cinéfila do sul-coreano é também visível no modo como, perto do clímax, ele enfatiza o ato de filmar como ferramenta discursiva fundamental para líderes populistas, provocando cenas quase metalinguísticas da equipe de Kenneth Marshall na tentativa de gravar seu depoimento em momento-chave da história.
No extremo oposto da concepção de cinema no qual a imagem é o instrumento máximo da linguagem, Mickey 17 investe numa oratória verborrágica que fala, fala e diz tão pouco. Com seu protagonista pueril, busca cultivar certa inocência perdida pela humanidade alvejada por guerras, numa tentativa de vencer o ódio pela candura. Na melhor das hipóteses, um filme com alguns momentos interessantes. Após arrebatar o mundo do cinema com seu genial Parasita (2018), Bong Joon-ho decepciona em seu novo projeto hollywoodiano.
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