Jomard Muniz de Britto

jomard muniz de britto

RETRATO TROPICAL: O DONO DO BORDEL BRASILÍRICO BORDEL
Jomard Muniz de Britto continua orgulhosamente no exercício da mar-gi-na-li-da-de
Por Thalles Junqueira

Livre-pensador, professor, poeta franco-atirador, filósofo pop, cineasta super-oitista, agitado agitador cultural, ator, diretor, escritor, crítico de cinema e de música, tropicalista, iconoclasta, maluco, marginal, último dos dândis, artista de colagens e bricolagens, performer almost full time e o escambau. É sempre assim, de maneira plural, que Jomard Muniz de Britto costuma ser apresentado por onde passa. “Eu fico alarmado com essa apresentação, me sentindo uma síntese de Raul Seixas com Glauber Rocha e Jean-Luc Jomard. Me preocupo com essa quantidade de nomes, de títulos, de etiquetas. Onde eu vou encontrar a minha singularidade?” É justamente nesse turbilhão que Jomard Muniz de Britto revela seu traço mais singular: ser vários.

Filho da pernambucana Maria Celeste Amorim Silva com o paraibano José Muniz de Britto, Jomard nasceu na Rua Imperial, bairro de São José, em 1937. Sendo híbrido de nascença, Jomard Muniz de Britto foi professor da UFPE e da UFPB. Graduado em filosofia pela Universidade do Recife, desde os anos 50 foi a um só tempo existencialista, cineclubista e intelectual engajado. Por isso, integrou a equipe do educador Paulo Freire, no início dos anos 60, durante a fase inicial do histórico programa de alfabetização de adultos. Com o golpe militar de 1964, seu livro Contradições do Homem Brasileiro foi proibido e Jomard Muniz de Britto, preso. Na cela se tornou companheiro de Gregório Bezerra, a quem tentou ensinar um pouco de francês.

Solto, Jomard deixou o Forte das Cinco Pontas, passou rapidamente em casa, viu os pais e correu para o cinema. Era o último dia de exibição de Deus e o Diabo da Terra do Sol, filme-monumento de Glauber Rocha, seu amigo. Muita gente pensa que Muniz de Britto foi assistente de direção de Glauber em 1959, no curta Cruz na Praça. “Não! Isso era invenção de Glauber! Ele contava essas mentiras. Nunca fui assistente dele!”. Os dois trocavam longas correspondências. Em uma delas, Glauber sugeriu que Jomard fizesse um filme sobre Lampião e que representasse, ele mesmo, o papel do Cangaceiro. Quando questionado sobre a razão do filme nunca ter saído, Jomard diz que “ninguém seguia, ao pé da letra, os delírios mínimos de Glauber”.

Em 1966, Glauber escreveu o prefácio do livro Do Modernismo à Bossa-Nova, de Jomard Muniz de Britto. Nele, o cineasta conta que os dois tornaram-se amigos através da paixão comum pelo cinema e que, ao longo da amizade, Jomard foi revelando-se palmo a palmo, mostrando que “o crítico de cinema era professor de filosofia, o teórico de poesia era entendido de teatro, o esteta rigoroso era jornalista, o jornalista era professor e o professor, sambista, outra vez no teatro!”.

Com o surgimento da Tropicália, Jomard percebeu que se identificava com os impulsos artísticos que se articulavam em torno do projeto tropicalista e logo escreveu, em Olinda, um manifesto também assinado por Celso Marconi e Aristides Guimarães, publicado no Jornal do Commercio em 1968. O movimento sofria forte rejeição tanto pelos sociólogos nacionalistas de esquerda, quando pela burguesia moralista da direita. Aristides Guimarães lembra que, certa vez, estava em uma festa no Clube das Pás com Jomard quando “o pessoal da esquerda ortodoxa começou a provocá-lo. Jomard usava uma flor grande na roupa, e eles perguntaram se aquilo era tropicalismo. ‘Não, é frescura mesmo’, respondeu”.

É por essas e outras que Jomard Muniz de Britto sempre fugiu dos radicalismos políticos. Dono de uma personalidade jamais estruturada por convicções fechadas ou rígidas, Jomard sempre buscou experiências anti-dogmáticas por excelência. “Procurei mostrar aos meus alunos que o dogmatismo é a atitude mais desaconselhável em termos de filosofia da cultura”. Jomard diz que a Errância do Eros é uma postura adotada por ele desde a juventude. A psicanálise trata esse termo como um contraponto para herança, que está muito ligada à conservação de patrimônios, à tradição. Já errância é a aposta na aventura, nos erros e acertos. Então, Errância de Eros é um sentimento amoroso livre, de pan sexualidade, considerado por ele como a maior contribuição de 68. “O sexo contra os dogmas!”, já gritava o manifesto tropicalista na época.

Jomard parece estar sempre desconfiado da tradição. Sua própria biografia está muito ligada à errância, à aventura pelos caminhos do novo. Da sofisticada Bossa-Nova ao transe do Cinema Novo, passando pela explosiva Tropicália e apoiando a radicalização cênica do Vivencial Diversiones, Jomard mostra sua visceral adesão às novidades de nossa cultura, obedecendo a suas preferências pelo experimental e defendendo “a vanguarda contra a retaguarda! o impacto contra a mediocridade!”. Com um espírito tão libertário, Jomard Muniz de Britto se assusta com uma corrente macabra chamada Internacional da Virgindade que circula no Orkut. “Até que ponto chegou a influência do Papa? As pessoas não estão querendo trepar! Essa Internacional da Virgindade representa uma grande vitória do politicamente correto, um retorno ao jogo de hipocrisias!”.

Apesar de recusar o título de poeta, Jomard Muniz de Britto faz maravilhas com as palavras, criando rimas internas, correndo o verbo pelas beiras buscando um eco, mãe de excitante musicalidade: “É tudo sentir, ressentir só pela metade, beijar, beijar, beijar mesmo sem ter vontade é esconder o medo do segredo, nossa liberdade de sonhar, sonhar, sonhar até a crueldade é tudo pedir só pela metade da vontade é tudo sofrer só pelo desejo da outra metade fina como a flor da cumplicidade”, do livro Terceira Aquarela do Brasil.

Do fundo escuro do coração solar do hemisfério sul, no nordeste da ilha Brasil, Jomard Muniz de Britto continua fazendo um bem enorme à nossa cultura, desafinando o coro dos contentes, agredindo com inteligência o mundo pacato do cidadão de bem e, de certa forma, trabalhando para ajudar os que “estão no mundo e perderam a viagem”. Multimídia, multifacetado, multicultural, multisexual – de volta à jaula dos rótulos – Jomard é tantos como esse Brasil de todos os santos, protegido pelas rugas e cabelos brancos, continua no exercício orgulhoso da mar-gi-na-li-da-de.

O teatro ao qual Glauber refere-se é, provavelmente, o Vivencial Diversiones, grupo pós-tropicalista com influências artaudianas que continuou uma radicalização cênica inaugurada pelo Living Theatre. Na trupe, a proposta antropofágica do Teatro Oficina de Zé Celso Martinez Corrêa, convergia com o tom desbundado de grupos de criação coletiva, como o carioca Astrubál Trouxe o Trombone. Jomard Muniz de Britto tem cerca de 30 produtos audiovisuais. “Vamos esquecer essas bitolas, já que 68 é justamente um ano para romper com elas. Então, a gente não fala super-oito, vídeo, mas de produtos audiovisuais”.