Homem com H
Esmir Filho
BRA, 2025. 2h09. Drama/Cinebiografia. Distribuição: Paris Filmes
Com Jesuíta Barbosa, Bruno Montaleone, Jullio Reis
Cinebiografias de grandes artistas da música têm se tornado um “gênero” vilipendiado pela indústria do cinema nos últimos anos. Menos preocupada com a potencialidade criativa das obras do que seu possível retorno comercial, Hollywood segue a conceber produções irregulares, no máximo discretas; para mencionar filmes recentes, Um Completo Desconhecido (2024) e Bob Marley: One Love (2024) são exemplos que ilustram a precariedade narrativa a qual me refiro. Talvez o principal inconveniente comum a esta leva recente de biopics seja esse saneamento exagerado de histórias demasiadamente impolutas, comportadas ao extremo (talvez por imposições do biografado ou familiares, talvez para oferecer um produto mais palatável ao grande público).
Na realidade brasileira, as cinebiografias tendem a carregar os trejeitos estéticos da linguagem televisiva, como as produções da Globo Filmes Meu Nome É Gal (2023) e Minha Fama de Mau (2019). Portanto, grata surpresa atestar que, mesmo com o acompanhamento próximo do biografado em questão, inclusive na leitura das várias versões do roteiro durante a produção, Homem com H (2025) visivelmente se sobressai da média devido às diversas qualidades que possui.
Condensando em pouco mais de duas horas todas as fases da vida de Ney Matogrosso, hoje com 83 anos, o filme dirigido por Esmir Filho é exitoso ao estabelecer uma espécie de melhores momentos de uma carreira marcada pela transgressão e pela liberdade criativa. Mesmo com os pés fincados na narrativa clássica linear, o cineasta consegue experimentar visualmente inúmeras possibilidades que a singularidade artística de Ney permite.
Ao abrir o filme com a música “Homem de Neandertal”, mesclando apresentação de Ney adulto (Jesuíta Barbosa) com imagens bucólicas e poéticas do artista criança em interação com a natureza, Esmir Filho adota o conceito de animalidade enquanto padrão narrativo – e o explora durante todo o longa.
O bestiário metafórico permeia a linguagem artística de Ney Matogrosso desde as primeiras experiências com o Secos & Molhados. Músicas como “O Vira” (O gato preto cruzou a estrada/passou por debaixo da escada/ E lá no fundo azul na noite da floresta/ A lua iluminou a dança, a roda, a festa) e a própria “Homem com H” (Nunca vi rastro de cobra/Nem couro de lobisomem/Se correr o bicho pega/Se ficar o bicho come…) evidenciam a biodiversidade poética das canções. Em certa cena do filme, Ney reitera: “eu sou bicho”. Não coincidentemente, o primeiro álbum solo do artista, de 1975, é intitulado “Água de Chuva – Pássaro”.
Cineasta de estreita relação com a música, do seu longa de estreia Os Famosos e os Duendes da Morte (2009) até a direção de videoclipes de Marina Lima e Céu – que faz participação especial nesta cinebiografia, Esmir Filho logra a obra mais robusta da sua carreira. A maturidade do diretor é perceptível em detalhes, como na simples e eficiente elipse temporal que transporta a narrativa da infância à vida adulta do protagonista.
O diretor assume os riscos ao propor um apanhado da biografia inteira do artista octogenário; sem dúvidas, haverá espectadores para os quais o condensamento narrativo parecerá apressado, superficial. Gosto da ousadia de nadar contra a maré atual de cinebiografias que se refugiam em apenas um período da vida do personagem e, ainda assim, pouco complexificam a história.
Junto ao diretor de fotografia Azul Serra, Esmir compõe belos planos e sequências ao longo da obra. Remetendo ao maravilhoso Bom Trabalho (1999) de Claire Denis, a cena do exercício ao ar livre, no período que Ney Matogrosso serviu à Aeronáutica, é lindíssima. Igualmente eficazes, os trechos musicados são dinâmicos e essenciais para o caráter voraz e ferino do protagonista e do próprio filme. Com um trabalho corporal assombroso, Jesuíta Barbosa entrega-se ao papel com todas as suas forças. Se a persona extravagante de Ney cai como uma luva para a explosão dramática de Jesuíta, o ator também brilha em momentos de introspecção, como na emocionante cena na qual Ney ouve “Rosa de Hiroshima” pela primeira vez, no estúdio, ao lado dos parceiros João Ricardo (Mauro Soares) e Gerson Conrad (Jeff Lyrio).
Coerente à liberdade sexual do protagonista, Homem com H se deleita em sequências nada caretas acerca das experiências afetivas de Ney Matogrosso. Talvez o filme se repita ao designar tanto tempo às transas casuais ou não do personagem, mas ressalte-se antes a coragem de conceber cenas calorosas, belamente filmadas, sem o pudor prejudicial que acomete tantas produções cinebiográficas. Se se alonga no romance turbulento do protagonista com Cazuza (Jullio Reis), a obra logo demonstra a importância da relação para alicerçar as reflexões sobre as perdas causadas pelo vírus HIV.
Síntese competente da trajetória de um dos maiores artistas da música popular brasileira, o filme de Esmir Filho é um tributo tocante que, se não abarca por completo, ajuda a compreender a grandiosidade de Ney Matogrosso. A cinebiografia chega nas salas de cinemas do país nesta quinta-feira (1).
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