Filhas da Noite
Henrique Arruda e Sylara Silvério
BRA, 2025. 1h50. Documentário.
Em um karaokê, no bairro de Casa Amarela, Marcia Vogue, Christiane Falcão, Sharlenne Esse, Raquel Simpson, Suellany Tigresa e Paloma Pitt cantam a música “Dancin’ Days”, um hit dos anos 1970 interpretado pelo grupo As Frenéticas. Com suas próprias vozes elas entoam: “Abra suas asas/ solte suas feras/ caia na gandaia/ entre nessa festa”. Juntas, vestidas com brilho e glamour, elas conversam, brindam alegremente e saem do bar caminhando pela avenida Norte rumo à noite.
- Leia mais: Doc Filhas da Noite, sobre artistas queer do Recife, ganha pré-estreia no Cinema São Luiz
Essa é a cena inicial do documentário Filhas da Noite, de Henrique Arruda e Sylara Silvério. As imagens mostradas, porém, significam muito mais do que uma cena de abertura. Elas oferecem um convite para assistirmos de coração aberto a um dos filmes mais interessantes realizados recentemente no Brasil com a temática LGBTQIA+. Premiado no último Festival do Cinema Brasileiro de Brasília, o trabalho de Arruda e Sylara é um tributo comovente e amoroso a um grupo de artistas pernambucanos que só hoje recebem a devida atenção e carinho. E, gente, é emocionante.
Quem circula na noite e frequentou, ou frequenta, as boates e saunas gays, mas também as casas de show e os teatros do Recife, certamente já teve a oportunidade de assistir a uma dessas artistas apresentando seus números musicais, nos quais interpretam e, ao contrário da sequência inicial do filme, dublam estrelas nacionais e internacionais. Encarnando de Elizete Cardoso a Gal Costa, de Whitney Houston a Beyoncé, elas fizeram do transformismo uma forma de se expressarem e de sobreviverem.
Debutando nos palcos a partir das décadas de 1970 e 1980, quando travestis e mulheres trans não tinham muito espaço para viverem abertamente suas escolhas, as protagonistas de Filhas da Noite nos presenteiam com um retrato sincero de suas vidas e nos dão uma lição: apesar das dificuldades, elas mostram como, por meio da arte, enfrentaram os preconceitos e não permitiram que seus corpos dissidentes fossem oprimidos.
O trabalho de Arruda e Sylara é uma daquelas obras em que ficam evidentes o apreço pelo objeto abraçado e o prazer experimentado em rodar um filme no qual se percebe em cada plano, em cada fala, um cuidado com os resultados a serem obtidos. A espontaneidade e desenvoltura de Marcia, Christiane, Sharlenne, Raquel, Suellany e Paloma diante das câmeras revelam também a alegria delas estarem juntas e puderem compartilhar o reconhecimento de suas carreiras. Em todo o filme sentimos como elas festejam essa oportunidade de sair das sombras da noite e ganharem as telas.

As quase duas horas de filme rolam como se estivéssemos ali com elas, se maquiando, experimentando os vestidos, escolhendo quem elas vão dublar, mas também conhecendo um pouco de suas vidas cotidianas, as pequenas intrigas, os deboches consentidos, as passagens engraçadas e absurdas, os concursos de miss gay em que foram vencedoras, as relações familiares e afetivas e, sobretudo, a solidariedade que as unem.
Mesmo tendo vivido carreiras distintas, em muitos momentos elas compartilharam tanto o palco quanto as glórias e agruras de serem quem são. E isso se apreende a partir de uma narrativa em que fica visível o respeito e a honestidade com que cada questão é tratada somada a um olhar que ressalta a altivez dessa rebeldia, como afirma Christiane Falcão ao ressaltar que nunca se sentiu como uma diva, pois sempre foi uma filha da noite.
Todo esse universo de tantas vivências e de tantas histórias envolvendo seis personagens poderia soar confuso e disperso, mas a direção segura de Arruda, que também foi responsável pela montagem, e de Sylara, responsável ainda pela direção de fotografia, tornaram o documentário Filhas da Noite um espetáculo atraente e instigante.
Apesar de ser um documentário de depoimentos, a monotonia passa bem longe, pois as falas são muito bem articuladas e conseguem dar ritmo e equilíbrio ao que está sendo contado. As seis narradoras parecem uma única pessoa e ao mesmo tempo não perdem suas individualidades.
Além disso, os autores apostam numa estética visual que dialoga com os espaços e ambientes por onde os personagens circulam. Com isso o filme adquire uma aura mágica, um estilo camp cuja funcionalidade se encaixa perfeitamente na proposta da obra que mescla números musicais, momentos encenados, situações naturais, e efeitos de luzes e lentes.
Embora retrate a vida de seis protagonistas, Filhas da Noite é uma obra que extrapola esse recorte principal. Ao trazer, nas diversas camadas que o compõem, um panorama afetivo dos lugares e personagens da cena LGBTQIA+ do Recife, ele contribui para dar forma e visibilidade a um cenário que por muitos anos foi invisibilizado pela história da cultura oficial.
Ver Marcia Vogue, Christiane Falcão, Sharlenne Esse, Raquel Simpson, Suellany Tigresa e Paloma Pitt brilhando em Filhas da Noite é reencontrar Elza Show, Consuela, Luciana Luciene e tantas outras personagens incríveis de uma cidade que precisa manter vivos seus desejos e seus sonhos de liberdade.
Leia mais críticas