Entrevista: Carpinejar

Carpinejar (Foto: Renata Stoduto/ Divulgação)

CARPINEJAR, EM DEZ PEDAÇOS
Por Rafael Dias. Fotos Renata Stoduto

A poesia de Fabrício Carpinejar, ou simplesmente Carpinejar, é magma puro em forma de nuvens. “Escrevo para ser reescrito,/ Ando no armazém da neblina, tenso,/ sob ameaça do sol./ Masco folhas, provando o ar, a terra lavada./ Depois de morto, tudo pode ser lido.” (fragmento de “Ouvidos de Orvalho”, do livro Biografia de Uma Árvore). Parece, às vezes, o encontro da violência de Raduan Nassar com a leveza quase etérea de Cecília Meireles. E também parece querer nos tirar do automatismo diário, daquilo que julgamos ser vida.

Há dez anos, o poeta gaúcho estreava na literatura, aos 25 anos, com As Solas do Sol, no qual mostra sua necessidade poética, porém ainda tímido. Atingiu maturidade e força singular com a antologia Caixa de Sapatos (2003) e o belo Como no Céu/Livro de Visitas (2005), barganhando láureas importantes para uma curta trajetória, entre eles o Açorianos de Literatura por duas vezes.

Em celebração à data redonda, a editora Bertrand prepara-se para relançar seus onze livros em 2008. Para entrevistá-lo, a revista O GRITO! propôs algo diferente, um bate-bola às avessas (sem, necessariamente, ter respostas monossilábicas). Uma conversa leve, despretensiosa: dez anos, dez referências na vida e obra de Carpinejar. Idéia que o poeta aceitou de pronto. “Fugir do óbvio é tudo o que desejo”, disse em resposta ao e-mail. O resultado você lê abaixo.

(um) LIVRO

O GRITO! – Um texto ou uma obra de arte pode mudar nossas vidas. Mas, geralmente, há “aquele” que nos dá um estalo, desvia o curso do nosso rio como um ponto de inflexão. Existe algum livro que tenha lido (relido), leia como fonte inesgotável de novas descobertas e que, se pudesse, teria escrito idêntico?
Carpinejar – O grande livro é aquele que não poderíamos escrever igual. Como leitor, percebe-se uma incompetência de nossa expressão diante da tradução perfeita do que sentimos. O grande livro é a nossa verdade com outra letra. E por estar em outra letra, ouvimos com atenção e recuperamos nossa experiência.
“Poema Sujo”, de Ferreira Gullar. O que é aquilo? Imaginar a vida que teria sido se ele permanecesse em São Luís. Quem não colecionou encruzilhadas e vidas passadas numa mesma vida?

(dois) POESIA

Certa vez, numa entrevista, você disse que poesia é incômodo, inquietação. Qual poema, de sua autoria ou não, o estremeceu desde a primeira vez que o leu e ainda hoje lhe causa calafrios? Há algum verso impregnado na sua memória como uma tatuagem imanente? Por quê?
O poema em que conversava com as roupas de meu pai, diante de sua ausência na infância, em “Um terno de pássaros ao sul”. Por ser real, por deixar o menino falar em mim, e por retornar – secretamente – uma pergunta feita pelo meu pai em “Os Viventes”. Lá, em 1979, ele descreveu a cena e questionava: “O que eu fazia entre as roupas?” Terminou o poema com uma interrogação. Um livro respondeu o outro, vinte anos depois.

(três) AMOR

Peço licença, humildemente, para plagiar Clarice Lispector, que tinha por hábito perguntar, sem medo ou pudor a seus entrevistados, ‘o que é o amor?’. Lendo o seu blog (fabriciocarpinejar.blogger.com.br), vi, porém, que propõe uma indagação metafísica mais profunda: ‘o que é o amor do amor?’. E logo responde: “…amor do amor é quando deixamos a expectativa pela esperança…/ amor é o contexto para aquilo que não tem explicação…”. Então amor é o maior dos enigmas? E o que mais ama?
Eu não peço licença para plagiar Clarice Lispector (risos). Acho que sou mal-educado. O amor do amor é não ter vergonha de nenhuma porção de tua linguagem com uma pessoa. Amo isso, ser compreendido e compreender, sem a necessidade de trocar de roupa e explicar. O que mais amo na vida é quando minha mulher me antecipa. Ela lê meu pulmão, bem antes dos lábios.

(quatro) HOMEM-MULHER

Tenho “alma feminina, corpo masculino”, escreveu você em uma matéria sobre o tema ‘literatura feminina’ versus ‘literatura masculina’. Contra velhos conceitos de gênero, subgênero, ou transgênero; sua bandeira parece ser o “metagênero” ou, como você mesmo diz, o “meio-termo”. Quem (ou que) você admira por fugir do óbvio, por ser (ou propor) um comportamento incomum, de fibra, forte, mas sem perder a sensibilidade?
João Gilberto Noll, por ser sensível, por adorar a febre da ficção, por não ostentar, por viver de literatura e trabalhar como se fosse sempre o primeiro e único livro.

(cinco) FEIO-BELO

No seu livro Filhote de Cruz Credo, um menino de cabeça grande, boca e dentes tortos deposita beleza na feiúra que lhe atribuem. Um personagem, dizem, ser seu alterego fiel, por conter traços autobiográficos. O que há de mais belo para você, a ponto de não importarem a casca e a matéria, mas pelo que esconde dentro de si?
Meus olhos. Eles mudam de cor conforme a luz. É meu efeito-surpresa só concedido com a intimidade. Antonio Maria dizia que precisava de três horas de conversa com uma mulher para que ela esquecesse seu rosto. Sou igual, com uma diferença: dependo de dois anos de papo para ela se apaixonar. Mato no cansaço.

(seis) DOR SOLAR

Dois em um, o seu livro Como No Céu e Livro de Visitas mostra a porção luminosa de um casal, e sua transversa face sombria. Até na dor deles há fagulhas solares, e insegurança na certeza do amor. Como extrair a epifania de uma dor crucial?
A dor é vaidosa, quer que mexemos nela toda hora. É o mesmo que acontecia na infância, de retirar a casca da ferida antes de realmente cicatrizar. A dor aproveita nossa ansiedade.
Temos que tratá-la como Senhora dor, com respeito. Aumentar a distância. Fazer de conta que é uma visita ou uma tia distante. Eu chamo de tu unicamente minhas alegrias.
Do choro, só aprendi a fazer careta.
Leveza, a epifania do casamento é a leveza. O senso de humor. A brincadeira. A provocação inteligente. Não decidir mais do que as perguntas. Casamento não é carreira, é lazer.

(sete) LUGAR SAGRADO

A quem ou a que recorre quando necessita se recolher, buscar sossego e aconchego, encontrar-se consigo para acalentar suas dores e alegrias? Não precisa ser um refúgio com endereço físico, pode ser simplesmente uma referência abstrata…
Miles Davis. Quando estou arrasado, escuto Miles Davis. Tomo um porre de sua música. Mordo as estrelas como se fossem as teclas de seu trompete.

Carpinejar (Foto: Renata Stoduto/ Divulgação)

(oito) SONHO REAL

São dez anos dedicados à literatura, e muitos elogios e prêmios em profusão acumulados em tão pouco tempo. Esse foi seu maior desejo realizado? Que outros sonhos nutre para os próximos dez anos?
Pescar, fazer pipas, amarrar os sapatos, dançar tango, e não matar mais nenhum Ficus em meu jardim por descuido. Sou o primeiro homem que conseguiu deixar um Ficus secar! Da literatura, não fazê-la uma religião, nem substituir Deus pela minha biblioteca. Não abro mão da minha mortalidade, e da compaixão com os defeitos. Sou colono que não larga a terra. Trabalho incessante é a cura do narcisismo e da megalomania.

(nove) UMA PERGUNTA

Um questionamento que o intriga até hoje, indissolúvel?
Por que o Brasil perdeu para a Itália na Copa de 82? Eu teria sido um adolescente bem resolvido (risos) e nem estaria escrevendo poesia e respondendo essa entrevista (mais risos).

(dez) UMA PISTA

Agora é com/para/sobre/por si você: uma referência, uma dica para quem nunca leu e queira ler Carpinejar.
Não tenha pressa de me ler. Deixe a pressa comigo