Entrevista André Diniz

Morro AndreDiniz

WORKAHOLIC DOS QUADRINHOS SOBE O MORRO

Por Paulo Floro
Editor da Revista O Grito!

André Diniz é um workaholic dos quadrinhos nacionais. Presentes em diversos projetos, ele lança neste mês, Morro da Favela, uma das mais instigantes HQs nacionais deste ano, que chega com o desafio de tratar de um tema atual como as favelas cariocas, sem apelar para a vitimização e a crítica social pretensamente construtiva. O livro é contado pelo olhar de Maurício Hora, fotógrafo que foi testemunha das transformações pelas quais o local passou desde que seu pai iniciou na vida do tráfico de drogas em meados do século passado.

O autor optou por um narrativa em que o traço é mais dramático que o texto, o que deixou a leitura mais leve. Autor de diversos livros, sozinho ou em parcerias, Diniz publicou por diversas editoras, além de seu próprio selo, Nona Arte. Entre seus trabalhos estão 7 Vidas (Conrad), O Quilombo Orum Aiê (Record), A Cachoeira de Paulo Afonso (Pallas) e Fawcett (com Flávio Colin, pela Devir). O quadrinhista falou com a Revista O Grito! sobre essa militância nas HQs e mais sobre a vontade de fazer uma obra sobre uma favela que poucos conhecem.

Você é um dos autores brasileiros de quadrinhos com uma das maiores produções, com obras em diversas editoras. Como consegue ser tão produtivo?
Bom, tem dois fatores aí. Quanto às ideias, elas não param de vir um segundo sequer. Acho a linguagem dos quadrinhos tão rica que não consigo olhar pra nada sem imaginar uma HQ partindo dali. Quanto à produção em si, o processo de transformar ideia em roteiro e depois em páginas desenhadas, aí é outra coisa. Quando fala-se dos “inimigos” que o autor de HQs enfrenta, fala-se de tudo: paga-se mal, a divulgação é difícil, tem editora que não é séria, essas coisas (e todos com certa base, infelizmente). Mas, desde 2008, eu elegi como o meu vilão o tempo que se gasta para criar uma página de HQs no método tradicional. Diferenciei criação de execução, e vi que 90% do tempo é gasto com a execução. Ou seja: você já sabe a história que vai contar e como vai desenhá-la, mas leva um ano pra colocá-la no papel. O que eu fiz foi trabalhar em métodos próprios para mudar isso, gastando muito menos com a execução, o que me permite dedicar mais tempo à criação da história e à concepção dos desenhos e da linguagem gráfica. E produzir mais HQs, com isso.
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A pergunta é inevitável: como você vê o mercado de quadrinhos hoje?
Maravilhoso no seguinte sentido: há uns oito anos atrás, não tínhamos mercado nem esperança de termos um. Hoje, estamos na mídia, nas maiores e melhores editoras e em destaque nas livrarias. Tá perfeito? De forma alguma, temos muito o que melhorar ainda. Mas olha quanta evolução em tão pouco tempo! E tudo sinaliza que vai ficar ainda melhor, várias portas continuam se abrindo. Isso é uma bola de neve (no bom sentido!) pois os autores amadurecem seus trabalhos, os leitores buscam cada vez mais as nossas HQs e nos fortalecemos cada vez mais. Sem falar na descoberta, até tardia, dos quadrinhos como um excepcional recurso pedagógico, o que foi importantíssimo nessa consolidação do mercado.

Você lançou sua própria editora, a Nona Arte, depois de passar alguns anos publicando fanzines. A auto-publicação ainda é um bom caminho para autores de quadrinhos no Brasil?
A auto-publicação por vários anos foi a minha universidade, pós-graduação, mestrado e doutorado. Aprendi muito, muito mesmo. Não tem melhor forma de começar. Você erra, acerta, erra de novo e pode errar várias outras vezes sem grandes responsabilidades, e nessa você aprende e descobre o seu caminho. Se hoje eu sei como lidar com um editor e a não exigir o que ele não pode me dar, é porque passei por essa etapa. Mas eu acho que, como tudo na vida, é importante dar passos à frente e hoje já nem tenho mais pique pra encarar a auto-publicação. Se bem que, por mais que o mercado se abra, ainda há estilos e propostas mais marginalizados, e tanto a web como as edições independentes continuam sendo um ótimo caminho para experiências nesse sentido.

Como surgiu a ideia para fazer O Morro da Favela? Quando teve contato com o trabalho do Maurício?
Conheci o Maurício Hora através do meu cunhado, Neko Pedrosa. Puxei com ele o assunto dessas pessoas cuja vida daria um filme, um livro (ou um quadrinho!) e ele, no ato, me falou no Maurício. Peguei o telefone dele e em poucos dias já estávamos na nossa primeira entrevista. Deve ter sido esquisito receber a ligação de um estranho perguntando se ele não quer ver a vida dele transformada em uma história em quadrinhos, e acho que ele só conseguiu visualizar exatamente a minha proposta já com as primeiras páginas prontas!

O livro chega numa hora em que as favelas do Rio de Janeiro passam por um processo de transformação social. Como é fazer uma HQ que dialoga com algo tão recente da realidade brasileira?
Quando a UPP – Unidade de Polícia Pacificadora – ocupou a Providência, acabando (torçamos que de vez) com o domínio do tráfico no morro, a HQ já estava pronta. Portanto, todos os nossos encontros foram em uma favela repleta de armas, com traficantes andando pra lá e pra cá com armas de guerra nas mãos, rádios e granadas na cintura. Ao mesmo tempo, os moradores de lá me recebiam com muito carinho sem nem saberem ainda quem eu era ou o que estava fazendo ali, e o clima entre eles, ultra-paradoxalmente, era o de total tranquilidade. Daí, deu um nó na minha cabeça, que nasce e cresceu em apartamento da zona sul do Rio. Foi uma aula de vida e como roteirista também, e uma tremenda responsabilidade: foi um desafio retratar aquele cenário complexo e contar a vida de Maurício e sua família, personagens de carne-e-osso com uma vida difícil e com passagens duras e controversas. Até demorei um pouco para ficar à vontade em colocar palavras nas bocas deles, mas depois tudo fluiu bem.
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Veja um preview da HQ (clique para ampliar)

O que você tinha em mente em relação ao desenho quando começou a trabalhar no álbum?
O meu traço bebe bem de duas fontes: a arte africana e a xilogravura. Eu já tinha feito algumas pequenas passagens em outras histórias nessa linha claro X escuro. Foram sempre as páginas mais elogiadas! Fiz alguns testes antes e acabei tomando coragem de fazer uma HQ toda nessa linha, meio receoso de errar na mão. Mas o Lobo e o Christiano, editores da Barba Negra, gostaram da ideia desde o começo, me encorajando. No final, fiquei bastante satisfeito com o resultado, e a recepção tem sido muito boa também. Acho que caiu como uma luva na minha proposta de passar o clima da favela, com formas icônicas e expressionistas. A história já tem uma carga muito forte de realidade, não vejo porque reforçá-la ainda mais com um desenho realista.

Vemos muitos trabalhos retratando o Rio, como carioca, como foi colocar a sua visão da cidade nas páginas do livro?
A questão é que o Rio de Janeiro que eu retratei no livro era um Rio de Janeiro que eu só conhecia por cartão-postal (e cartão-postal da favela, infelizmente, ainda é a página policial dos jornais). Não foi como retratar um Rio que eu já conhecia desde a infância, ali é a face do Rio que o resto da cidade quer esconder debaixo do tapete. O meu desafio foi retratar a favela sem preconceitos, mas sem também errar a dose e transformar em algo lindo e irreal. Por isso, visitei a favela várias vezes e fui extremamente fiel ao depoimento do Maurício -este, sim, pode falar da Providência com propriedade.

Você já chegou a afirmar que sua carreira mudou após o livro Quilombo Orum Aiê. Por que?
Ele foi um marco para mim em vários aspectos. O principal foi que, a partir dele, eu defini o meu estilo de desenho, encontrei a minha expressão gráfica e criei o meu próprio método de trabalho, bem particular, que me permite produzir mais e com mais qualidade do que antes. Quanto à história, nenhuma me deu tanto prazer até então, e acabei aproximando mais a minha narrativa a partir daí com uma grande paixão minha, que é o cinema. O fato de ter sido publicado por uma editora como a Record também foi um grande passo adiante.

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André Diniz e Maurício Hora no Morro da Providência (Foto: Divulgação)

Qual a lembrança mais remota que você tem em querer trabalhar com quadrinhos?
Nossa, eu nem sabia ler ainda e já fazia as minhas HQs! Não é exagero, nasceu mesmo comigo. E não sei a explicação, pois nunca tive ninguém próximo que desenhasse ou que sequer fosse leitor de quadrinhos. Os primeiros quadrinhistas eu conheci lá pelos 16 anos, já fazendo os meus primeiros fanzines (que eu nem sabia que tinham esse nome!).

Como é seu cotidiano, pode nos dar mais detalhes sobre seu trabalho?
Pra quem vê de fora, o meu cotidiano é a coisa mais sem graça do mundo (e ainda bem!)… Trabalho em casa, a maior parte do tempo no computador. Não tem nada muito interessante pra falar, uso tablet, Photoshop, apago uns SPAMs da minha caixa postal. É um trabalho muito introspectivo, principalmente na etapa em que estou buscando as ideias pra uma história nova. Aí, você pode me ver um dia inteiro na cama ou andando na rua, meio sem rumo, como se não estivesse fazendo nada. Pois acredite: essa é a etapa mais desgastante!

Pode nos antecipar qual seu próximo trabalho?
Nesse mês, junto com o Morro da Favela, acaba se ser lançado também A Cachoeira de Paulo Afonso, uma adaptação que fiz do poema de Castro Alves. Até o fim do ano, sai a HQ Mwindo, a adaptação de uma lenda africana divertidíssima, onde pela primeira vez eu desenho o roteiro de outra pessoa – no caso, da roteirista Jacqueline Martins. Além desses, uma outra HQ juvenil envolvendo folclore brasileiro, uma HQ infantil prontinha, uma série de webcomics inspiradas na psicanálise de Jung, um roteiro pronto que vai começar a ser desenhado por outro desenhista e umas seiscentas outras ideias, em diferentes estágios, desde roteiros e sinopses prontas até algumas que só têm os primeiros esboços rabiscados. Ufa! Só que dessas eu não posso adiantar nada ainda.

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