emilia perez
Karla Sofía Gascón como Emilia Pérez e Zoë Saldaña como Rita. (Foto: Pathé Films/Divulgação.)

“Emilia Pérez”: apesar do espetáculo visual, olhar de Jacques Audiard é superficial e simplista

Longa mistura drama, ação e musical, abordando a transição de gênero e o narcotráfico no México com uma abordagem esteriotipada

“Emilia Pérez”: apesar do espetáculo visual, olhar de Jacques Audiard é superficial e simplista
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Emilia Pérez
Jacques Audiard
FR, 2024. 2h. Drama, Comédia Musical, Suspense. Distribuição: Paris Filmes
Com Karla Sofía Gascón, Zoë Saldaña e Selena Gomez


Desde sua estreia no Festival de Cannes 2024, Emilia Pérez (que venceu o Globo de Ouro 2025 de Melhor Filme em Língua Não-Inglesa) tem provocado reações intensas e polarizadas. Enquanto alguns celebram sua ousadia, destacando a fusão dos gêneros musical, drama e ação, outros apontam falhas que comprometem sua autenticidade e profundidade. A obra do diretor francês Jacques Audiard se arrisca a ser tanto uma celebração da transformação quanto uma caricatura da cultura mexicana.

A trama gira em torno de Rita, uma advogada interpretada por Zoë Saldaña (que venceu o Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante em Filme pelo papel), cuja competência profissional é inquestionável, mas que se vê envolvida em casos moralmente duvidosos. Sua trajetória toma um rumo inesperado quando é contratada por Manitas (Karla Sofía Gascón), líder de um cartel mexicano, para ajudá-lo a completar sua transição de gênero e abandonar o mundo do crime. Ambientado no México, o filme se configura como um retrato de dilemas pessoais e sociais, mas falha ao tratar de questões complexas da cultura mexicana com uma abordagem superficial.

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Foto: Pathé Films/Divulgação.

Representatividade ou oportunismo?

É nítido para o espectador quando uma produção se empenha numa pesquisa cuidadosa, que realmente honra as temáticas que propõe. Este, aliás, é um dos papéis centrais da direção: a construção de uma narrativa que reverencie e explore as questões abordadas. Contudo, Emilia Pérez peca exatamente nesse aspecto. A evidência de uma pesquisa superficial é patente, o que se reflete diretamente no modo como a história é apresentada.

A narrativa frequentemente negligencia as sutilezas culturais e sociais que se propõe a retratar. Em vez de mergulhar nas complexidades das questões relacionadas à identidade de gênero e à violência do narcotráfico, o filme opta por uma abordagem rasa, mais preocupada com os elementos estéticos e de espetáculo do que com a profundidade substancial.

Não surpreende que Hollywood tenha se interessado por uma obra que faz uso direto de estereótipos. O filme, ao tratar de temas como o narcotráfico e a transição de gênero no contexto mexicano, adota uma abordagem excessivamente estilizada, distanciando-se da realidade e, por conseguinte, recaindo em clichês. A tentativa de abordar as complexidades de uma cultura sem o devido entendimento e uma pesquisa sólida resulta numa obra que, embora visualmente impactante, se perde na tentativa de se mostrar mais do que realmente é.

No que diz respeito às atuações, Zoë Saldaña e Karla Sofía Gascón oferecem performances adequadas, sendo capazes de sustentar, com alguma competência, o peso da trama. Saldaña, em particular, imprime à sua personagem Rita uma carga emocional interessante. Gascón também se destaca e consegue conferir à sua personagem uma profundidade que o roteiro, infelizmente, não oferece. No entanto, o mesmo não se pode dizer de Selena Gomez, que interpreta a esposa da personagem principal antes de sua transição de gênero. Em todas as suas cenas, a atriz entrega uma performance caricata, marcada por um sotaque completamente destoante.

Musical: audacioso, mas vazio

A escolha de Audiard em contar uma história sobre o México, com um elenco predominantemente estrangeiro, gerou controvérsias. Embora o filme tenha sido selecionado para representar a França no Oscar, a ausência de vozes autênticas, como atores mexicanos, e a gravação fora do México, criam um distanciamento difícil de ignorar. A tentativa de utilizar a música como ferramenta para traduzir os sentimentos e conflitos das personagens possui méritos, mas falha ao não conseguir capturar a magnitude das emoções que almeja transmitir. As canções, por vezes, se tornam distrações, afastando o espectador da narrativa e ofuscando o potencial dramático da história.

Contudo, Emilia Pérez não é uma experiência facilmente categorizável. O filme se apresenta como um musical de suspense e ação e o visual é impressionante, com momentos de grande destaque na fotografia. No entanto, a direção de Audiard parece optar por uma estética excessivamente estilizada. Os números musicais, com suas coreografias elaboradas, muitas vezes entram em conflito com a gravidade das situações abordadas, criando uma sensação de desconexão entre forma e conteúdo, sem que isso seja explorado de uma maneira artisticamente eficiente.

Outro ponto de desconforto reside na abordagem da transgeneridade. Emilia Pérez, personagem central da trama, é uma figura complexa, e sua jornada de transformação é tratada de maneira excessivamente expositiva, carecendo da sutileza necessária. A música, enquanto recurso narrativo, em vez de intensificar as emoções, acaba por empurrá-las para uma superfície que impede uma verdadeira conexão emocional com a dor e a alegria da personagem.

Ao mesmo tempo, a representação do narcotráfico e da violência no México se revela simplista e estereotipada, uma tentativa de se aproximar de uma cultura sem a devida compreensão, o que acaba por desvirtuar questões sérias, como a violência dos cartéis e os desaparecimentos forçados.

O maior problema de Emilia Pérez, contudo, reside na falta de um foco dramático claro. A obra parece mais uma sucessão de cenas impactantes e números musicais do que uma narrativa coesa. Há uma tentativa de criar uma história de transformação e redenção, mas o filme nunca encontra um tom que una esses elementos de forma eficaz. O resultado é uma produção que se perde na grandiosidade de suas próprias ambições, sem conseguir cumprir as promessas que faz.

Embora Emilia Pérez tenha sido bem recebido em Cannes e esteja se preparando para uma forte campanha na temporada de premiações, é difícil não questionar se o filme conseguirá se sustentar.

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