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Cena do filme (Divulgação)

Documentário “Razões Africanas” discute influência da diáspora na música das Américas

O filme analisa ritmos musicais americanos surgidos a partir da diáspora dos povos africanos e suas relações com seu continente de origem

O documentário Razões Africanas, dirigido por Jefferson Mello e distribuído pela Tremé Produções, terá uma pré-estreia especial em Recife nesta quinta-feira, dia 3 de julho, na sala Derby do Cinema da Fundação e terá a presença do diretor e da artista brasileira Lazir Sinval, uma das personagens centrais do filme.

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O filme, que estreia nesta sexta-feira (04), explora a profunda influência da diáspora africana na formação de três ritmos musicais: o blues do Mississipi, a rumba cubana e o jongo do Brasil. A história acompanha três personagens, cada um deles ligado a um dos ritmos, revelando as origens africanas comuns a esses estilos musicais que se espalharam pelas Américas.

O diretor destaca a importância da reparação histórica e do diálogo intercultural, com uma jornada que começa em Angola e segue o caminho dos congoleses, chegando aos demais países, para construir narrativas históricas desses gêneros musicais e sua identidade cultural.

A ideia de pesquisar estes gêneros em específico, segundo o diretor, veio depois dos estudos de seu documentário anterior Samba & Jazz: Rio–New Orleans (2014), que, como o título diz, analisa as relações entre o samba carioca e o jazz da Louisiana tanto pelas suas similaridades sonoras e como por suas questões comportamentais. 

“Sou um estudioso e apaixonado pelo blues e conheço bem o sul dos Estados Unidos, especialmente o Mississippi, o Alabama, New Orleans e Memphis – lugares onde a música está impregnada de dor, força e ancestralidade. A rumba, por sua vez, me atrai profundamente, e Cuba é um país que conheço e admiro há muitos anos. Já o jongo entrou no projeto de forma ainda mais pessoal: ao conhecer profundamente a trajetória da Lazir Sinval, eu já tinha em mente contar a história dela, e, por meio dela, mostrar também a resistência das mulheres dentro do jongo.”, contou o cineasta a Revista O Grito!. 

As relações abordadas no filme – principalmente o aspecto da música como uma ferramenta de sobrevivência cultural dos povos africanos escravizados – já são amplamente discutidas e reconhecidas dentro do meio acadêmico, assim como a influência profunda que essa relação teve com o surgimento da música brasileira em si. 

A jornalista e pesquisadora Luane Fernandes, doutoranda de comunicação na UFPE, comenta como essa relação entre arte e sobrevivência se desenvolveu nos povos africanos traficados ao Brasil. 

“Vários autores apontam a importância da religiosidade e da música – ou seja, das expressões culturais de matriz afro-indígena – nos processos de resistência à colonização. [Kabengele] Munanga, por exemplo, afirma que a primeira forma de arte afro-brasileira é uma arte ritual, isto é, uma arte marcada pelas heranças ancestrais e sagradas, que envolvem, por exemplo, o canto, a dança, os tambores e os orixás. No Brasil, a continuidade dessas práticas foi fundamental para a permanência das expressões de matrizes afro-indígenas.”, analisa. 

“De outro modo, o autor aponta que, não fosse esse caráter ‘superior’ da religiosidade, teria ocorrido a morte total da cultura dos diversos povos que fizeram a travessia. Foi justamente esse caráter superior, que envolvia a música e o sagrado, que fez com que essas práticas sobrevivessem durante o percurso transatlântico.”, aponta a pesquisadora. 

No entanto, para o diretor, toda essa profundidade das relações entre a diáspora africana, arte de matriz afro-indígena e a construção da nossa música ainda são desconhecidas por grande parte do povo brasileiro por uma “ignorância estrutural”, como ele mesmo chama.

“Isso é muito visível na população branca, que consome esses ritmos com naturalidade, mas muitas vezes sem entender a origem deles, sem perceber a dor, a luta e a genialidade que estão por trás dessa musicalidade ancestral. Mas o que me chamou ainda mais atenção, ao exibir o filme em festivais internacionais, foi perceber que esse desconhecimento não acontece só no Brasil. Quando levei o filme para os Estados Unidos e para países do continente africano — especialmente Angola —, percebi que muitos jovens africanos também desconhecem a conexão profunda entre sua história e esses ritmos que o mundo inteiro consome. Eles sabem muito sobre o funk, sobre os sons contemporâneos, os hits globais, mas têm pouco contato com a base ancestral”, afirma Jefferson.

“Isso foi muito forte para mim. Ouvir de jovens africanos: ‘Eu não sabia que meu povo teve influência nisso’, me mostrou o quanto essa desconexão foi produzida ao longo do tempo — por colonialismos, apagamentos, e também pela cultura da velocidade que consome o novo e esquece as raízes.”, reflete.

Luane tem uma análise semelhante a do diretor, e argumenta como essa ignorância, em último caso, sustenta discursos como o mito da democracia racial. 

“Acredito que a maior parte da população desconhece as heranças africanas e indígenas na nossa cultura como um todo. Estima-se que existem mais de mil citações aos orixás e entidades de matrizes africanas na música brasileira, no entanto, essa história não é contada, nem na mídia hegemônica, nem no ensino básico. Desse modo, vivemos ainda sob a defesa do mito da democracia racial, que embora já deveria estar vencido. Desconhecer as nossas heranças ancestrais é desconhecer a nossa história e também desvalorizar as fundamentais contribuições dos povos africanos e nativos para a formação da cultura brasileira. ” 

A pesquisadora segue, “os terreiros continuam sendo queimados, os adeptos das religiosidades de matriz afro-indígenas perseguidos, as manifestações culturais apropriadas e expropriadas. Ainda que as pessoas comuns continuem pulando as sete ondinhas para Iemanjá, a colonialidade segue em curso e encontrando inúmeras formas de manutenção”, conclui.