Crítica – HQ: Uma Metamorfose Iraniana, de Mana Neyestani

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Divulgação / ©Mana Neyestani.
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KAFKA NO IRÃ
Uma Metamorfose Iraniana revela os perigos e as injustiças do regime totalitário

O cartunista iraniano Mana Neyestani viveu um pesadelo causado por uma simples barata. Ele foi preso pelo regime de Teerã depois de ser acusado de desestabilizar o governo por conta de um cartum. Em 2006 ele desenhou um diálogo entre uma barata e uma criança em um suplemento infantil de um jornal. O inseto usa uma palavra azeri, povo de origem turca do norte do Irã que é bastante oprimido pelo governo central. Foi o suficiente para provocar diversos protestos em diversas partes do país e arredores, incluindo mortes.

Uma Metamorfose Iraniana, contada com tons de humor absurdo e suspense, é comovente e perturbador em igual medida. Mana e o seu editor serviram de bode expiatório e foram enviados para a prisão conhecida como “209”, uma seção não-oficial da penitenciária Evib, sob o comando do VEVAK, Ministério da Inteligência e da Segurança Nacional, algo como a CIA do Irã. Ao entrar lá, o autor passa a descrever o périplo kafkiano no qual é baseado o regime totalitário islâmico.

A HQ transporta o leitor para um ambiente claustrofóbico causado pelo regime iraniano dos anos 2000. O título, além de fazer referência a Franz Kafka e sua obra seminal O Processo, também denota a metamorfose pelo qual passou o país persa depois que passou a radicalizar as aplicações das leis islâmicas. Para completar, a barata desenhada por Mana de forma inconsequente e sem nenhum lastro político, serviram de pólvora para as tensões que estavam guardadas há anos.

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Veja um trecho da obra

Os azeris são um povo muçulmano de origem turca. Após as Guerras Russo-Persas, esse grupo se dividiu em dois territórios, sendo a maior parte ficando dentro do norte do Irã, no chamado Arzebaijão Iraniano. Bastante acossados, eles sofrem com a discriminação e possuem, em geral, menos condições que as populações de outras etnias.

A obra aposta no tom metalinguístico para conduzir a narrativa. Ele usa o mote da barata kafkiana para demonstrar a resiliência do inseto, tão difícil de se livrar quanto a burocracia e as injustiças do sistema. Ele ainda abusa de metáforas como quando quebra a moldura da diagramação ao ganhar asas. Isto coloca a HQ em uma corda bamba entre o tom ácido e o humor típico dos cartuns.

Neyestani ainda narra a história paralela de um personagem que será decisivo para sua tentativa de fuga do Irã. Isso vai aumentando o suspense ao leitor dentro do intrincado plano do autor e de sua esposa contra o regime.

A história de Mana Neyestani encontra paralelo com outros episódios de perseguições políticas e injustiças causadas pela liberdade de expressão. Nos anos 90-2000, o escritor Salman Rushdie sofreu uma fatwa, uma declaração de morte causada por autoridades religiosas no Irã, depois de ter escrito o livro Os Versos Satãnicos. O nível de intolerância foi acirrado no ainda mais com a chacina dos cartunistas do Charlie Hebdo, na França, país onde Mana mora hoje com a mulher. 12 pessoas foram mortas, além de vários feridos.

Uma Metamorfose Iraniana é um chamado à compreensão e do respeito às diferenças, mas também revela muito sobre os perigos do uso político do radicalismo religioso. A edição da Nemo é primorosa e traz um bom custo-benefício dada a qualidade da obra.

iraUMA METAMORFOSE IRANIANA
Mana Neyestani
[Nemo, 208 págs, R$ 39,90 / 2015]
Tradução: Fernando Scheibe

9,0

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Editor