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(Foto: Caroline Bottaro/Divulgação/Pandora Filmes).

Crítica: As Histórias de Meu Pai mescla comédia e drama para trazer uma perspectiva infantil sobre abuso

Habilmente, o roteiro combina aspectos lúdicos, inerentes à natureza da criança, com o peso do drama familiar e da doença mental do pai

Crítica: As Histórias de Meu Pai mescla comédia e drama para trazer uma perspectiva infantil sobre abuso
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As Histórias de Meu Pai
Jean-Pierre Améris

França, 2020, 1h45. Distribuição: Pandora Filmes
Com Benoît Poelvoorde, Jules Lefebvre e Audrey Dana
Em cartaz nos cinemas

Incorporar o olhar infantil em uma obra, seja qual for, é um exercício de atenção e delicadeza. Isso porque nós, adultos, no alto do nosso suposto entendimento do mundo, podemos acabar atribuindo um olhar toscamente ingênuo – que subestima a percepção infantil – ou um olhar maduro demais – quase que nos projetando nele e atribuindo uma maturidade ainda não existente. Por mais que todos tenhamos sido crianças algum dia, achar um ponto de equilíbrio pode ser difícil.

No longa As Histórias de Meu Pai, o cineasta francês Jean-Pierre Améris assume esse desafio para contar a história de Émile (Jules Lefebvre), um garoto de 11 anos que enxerga na figura do seu pai um verdadeiro herói. Espião, faixa preta em judô, paraquedista, fundador de uma famosa orquestra e conselheiro do presidente Charles de Gaulle. Essas são algumas das inúmeras funções que o pai, André (Benoît Poelvoorde), se vangloria de já ter exercido. O problema, porém, é que por trás de todas essas histórias fascinantes está uma vida atravessada pela mitomania, distúrbio de personalidade caracterizado pela compulsão por mentir.

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André (Benoît Poelvoorde) entrega ao pequeno Émile (Jules Lefebvre) uma carta escrita pelo padrinho do menino, um espião americano que está por trás da OAS. O problema é que esse padrinho não existe. (Foto: Caroline Bottaro/Divulgação/Pandora Filmes).

Adaptada do romance Profession du Père (que, em francês, corresponde ao mesmo título do filme), do escritor Sorj Chalandon, a trama é ambientada no início dos anos 1960, durante a Guerra da Argélia, conflito armado pela independência deste país que até então era colônia francesa. Contrário à descolonização da Argélia, André arrasta o filho para um mundo de mentiras que envolve um velho amigo e espião americano, a Organisation Armée Secrète (OAS), grupo paramilitar da extrema-direita francesa, e um plano para assassinar o presidente francês Charles de Gaulle.

Impressionado com o grande propósito envolvido nas pequenas missões que o pai lhe passa, o garoto faz de tudo para o plano dar certo. Ainda sem o amadurecimento necessário para enxergar, naquele momento, as violências ao qual está submetido, Émile leva tudo às últimas consequências, chegando, inclusive, a envolver no delírio extremista um recém-chegado colega de classe Pied-Noir (termo utilizado naquela época para se referir ao cidadão francês nascido na Argélia).

Mesclando elementos de comédia e drama, o resultado é uma obra que a todo tempo caminha sobre a estreita linha entre um olhar infantil lúdico e deslumbrado com as histórias do seu progenitor e uma rotina violenta marcada por abusos físicos e psicológicos. Enquanto enxergamos, em Émile, o entusiasmo da aventura criada pelo seu pai, vemos sempre um olhar preocupado na mãe, Denise (Audrey Dana), uma mulher submissa e silenciada pelo marido violento.

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Denise (Audrey Dana) consola o filho depois de um dos vários episódios de violência do marido. (Foto: Caroline Bottaro/Divulgação/Pandora Filmes).

Assim, o longa consegue combinar aspectos lúdicos, inerentes à natureza da criança, sem deixar de atribuir o peso que o assunto merece – tarefa difícil, já que poderia cair facilmente no erro de romantizar uma situação de abuso. É a sutileza dos diálogos e das expressões no rosto de cada um que vai revelando ao espectador a dinâmica familiar. Ao mesmo tempo que criança vê o pai como um herói, também teme ele. Explosivo e violento, André impossibilita que qualquer vida seja cultivada ao seu redor, tolhendo a sociabilidade da mulher e do filho. É a síntese da violência patriarcal onde tudo é uma ameaça à figura de poder.

Tudo o que o filme parece acertar nesse aspecto, porém, aparenta errar no tratamento que dá ao verniz político, abrindo margem para uma interpretação dúbia e perigosa na qual ideias de extrema direita estão associadas à loucura. Discurso, aliás, lamentavelmente muito entoado em tempos recentes no contexto brasileiro. Extremistas de direita, sejam os franceses da OAS ou as milícias bolsonaristas no recente caso brasileiro, são cidadãos em pleno exercício das suas faculdades mentais e organizados coletivamente. Já a mentira de André é patológica. Ele a usa para afundar o filho no delírio e forjar a própria realidade. Ter esse olhar cuidadoso ao longo do filme, portanto, é essencial para não incorrer em tal erro.

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