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Montagem/Reprodução.

Conto: Troye Sivan

Adalberto agora se sentia íntimo do seu amado. Não era apenas um fã, era um amante, pouco importando se apenas ele soubesse disso

Adalberto andava desanimado. Passava os dias cabisbaixo deitado no sofá. Quando não estava assistindo televisão ficava olhando fixamente para a única janela de sua quitinete pelo menos umas três ou quatro vezes por dia. Essa estranha atração por janelas o acompanhava há meses, sobretudo se elas estivessem acima do quinto andar dos edifícios. Ao chegar num consultório, na casa de um conhecido, seu primeiro movimento era ir até a janela, olhar para baixo e imaginar o estado de seu corpo após a queda. Além da obsessão por janelas, outro pesadelo o atormentava, os espíritos de seis criaturas, cujos gêneros ele não conseguia definir, que vinham perturbá-lo todas as madrugadas. Essas almas errantes não lhe davam sossego. Ficavam alisando seu braço, passavam as mãos frias em suas nádegas e costas – Adalberto tinha o hábito de dormir sem roupas – e até o ameaçavam com punhais e adagas. Numa dessas noites horrendas, Adalberto não conseguiu mais dormir e ligou a televisão. Sintonizou um programa de videoclipes e ficou vendo e ouvindo as figuras coloridas se moverem diante dos seus olhos sem prestar muita atenção até surgir na tela uma bunda levando uma palmada. Uma batida dançante ecoou pela quitinete e um rapaz magro de olhos azuis deslizava pela tela entre outros garotos e garotas de corpos belos e sensuais. Eles dançavam freneticamente, rapazes beijavam rapazes, moças beijavam moças… Adalberto sentiu uma vibração esquisita invadindo seu cérebro, o coração acelerou… as cores vivas, os movimentos lascivos e a letra da canção… você fez meu coração acelerar/ meu corpo em chamas/ eu sinto a pressa/ viciado em seu toque/ eu sinto a pressa/ é tão bom, é tão bom… Adalberto começou a balançar a cabeça e levantou-se do sofá, em passos meio trôpegos tentava repetir a coreografia que via no vídeo, seus olhos ficaram marejados quando começaram as cenas finais… o rapazinho franzino de olhos azuis caminhando sobre um viaduto com o dia claro, a expressão de prazer estampada no rosto… Adalberto se viu como se tivesse voltado no tempo, um flash rápido o jogou pelas ruas das grandes cidades onde morou… São Paulo… Nova York… Londres… ele era o rapaz, a mesma imagem, o corpo cansado e feliz com todas sensações ainda latejando na pele e no peito. Adormeceu outra vez.

Um raio de sol atravessou a fresta entre as cortinas da janela da quitinete e banhou a face de Adalberto. A inquietação provocada pelo videoclipe da madrugada não cessara. Correu para o computador e acessou Deus e dos arquivos da biblioteca de Babel extraiu todas as informações sobre o belo menino cantor. Onde ele nasceu, onde vivia, o que gostava, o que comia, como era sua casa, outras canções que compusera, os filmes que participou. Quando concluiu a pesquisa já era quase final da manhã. Sentiu-se disposto e animado como não acontecia há muitos meses. Tomou um banho frio, colocou roupas limpas e coloridas e ganhou a rua. Teve o cuidado de pegar o celular e fones de ouvido e colocou como trilha sonora de seu passeio a playlist completa das músicas do seu novo ídolo. Pegou um carro de aplicativo e foi caminhar na beira-mar. Depois de uma longa caminhada, sentou-se num quiosque e bebeu uma cerveja. “É tão bom, é tão bom” ressoava sem parar em seus ouvidos. O verde do mar parecia mais verde, o céu com poucas nuvens tinha um brilho tão intenso que Adalberto ficou inebriado. No final da tarde voltou para casa e correu para ligar a TV. Os clipes do rapaz de olhos azuis desfilaram sem parar por horas seguidas. Encantou-se com a canção em que o garoto se transforma numa drag queen, ficou extasiado com ele caminhando no terraço de um edifício com uma roupa cintilante, teve ereções quando via e revia seus mamilos róseos. Quando deu meia-noite estava esgotado. No sofá mesmo adormeceu. Na madrugada os seis espíritos apareceram, mas não portavam os punhais. Adalberto os encarou. Eles começaram a rir de forma debochada. Adalberto não deu importância e pela primeira vez após tantos meses voltou a dormir indiferente. Ao levantar percebeu que continuava disposto. Foi até a janela, afastou as cortinas e as abriu com força, uma rajada de vento fresco invadiu a quitinete e ele olhou para o alto. Um casal de gaviões cruzou o céu. Adalberto ligou a caixinha que comprara a um vendedor ambulante e as notas musicais e a voz suave do rapaz eclodiram… meu corpo em chamas/ eu sinto a pressa … elas se espalharam pelo recinto, atravessaram as paredes e ganharam o mundo. No resto da manhã Adalberto fez planos para o futuro. Eram projetos difusos, ideias dispersas ao som de … você despertou algo em mim/ e eu não acho que consiga controlar… Por volta do meio-dia notou que o seu app de música por streaming tinha publicado o seu balanço anual, ao acessá-lo viu que a canção do rapaz de olhos azuis tinha sido a sua música mais ouvida, marca alcançada em apenas um dia de sua descoberta. Adalberto ficou radiante. Antes do balanço terminar uma mensagem apareceu na tela do celular dizendo que alguém queria falar com ele. Adalberto estranhou, mas clicou no banner indicado e quase teve um troço quando o rapaz de olhos azuis apareceu na tela se dirigindo a ele agradecendo a preferência. Adalberto ficou tão embevecido que no mesmo instante catou as redes sociais do moço e passou a segui-lo. Agora se sentia íntimo do seu amado. Sim, agora não era apenas um fã, era um amante, pouco importando se apenas ele soubesse disso. 

Uma batida dançante ecoou pela quitinete e um rapaz magro de olhos azuis deslizava pela tela entre outros garotos e garotas de corpos belos e sensuais. Eles dançavam freneticamente, rapazes beijavam rapazes, moças beijavam moças… Adalberto sentiu uma vibração esquisita invadindo seu cérebro, o coração acelerou…

Em poucos dias, Adalberto era outra pessoa. Arrumou sua quitinete que há semanas não sabia o que era uma faxina. Jogou coisas velhas fora, inclusive os troços que restaram do seu último namoro terminado de forma dramática uns oito meses atrás, dois posters desbotados que o ingrato nunca se dignou a ir buscar depois do rompimento, mesmo Adalberto ameaçando jogá-los no lixo. E a trilha sonora para toda essa labuta continuava sendo as canções do seu amado. Ao acordar, entrava nas redes sociais e via e lia tudo que o moço havia postado. Se alguém dissesse nas redes algo contra o rapaz, tomava as dores para si e o defendia com unhas e dentes. Foi assim no episódio das críticas ao videoclipe que mudara sua vida. Ao ver como o rapaz ficara triste quando disseram que faltara ao vídeo uma maior diversidade de corpos, Adalberto ficou pê da vida. No fundo ele até concordava parcialmente com as observações, mas não suportava a ideia de que o seu amor estava sofrendo com os comentários, fato que o levou a protagonizar diversas tretas nas redes. O acontecimento o fez ouvir e assistir ainda mais ao clipe. Para aplacar o desgosto ligava a caixinha de som no volume máximo e seguia feliz. Na sétima noite após a revelação, Adalberto adormeceu outra vez no sofá.  Naquela madrugada as seis almas penadas reapareceram, mas levaram um susto. Adalberto deu um pulo na cama ligou a televisão, acessou o app de vídeos e reproduziu sua canção idolatrada. A sala se encheu de luzes e com o som no último volume, Adalberto começou a dançar e pular como se estivesse possuído por alguma entidade, deixando os espíritos atônitos. Um por um eles foram sumindo e Adalberto jogou-se no chão arfando e rindo. Era uma risada insana e quase gritada. Quando estava mais calmo ouviu o interfone tocar. Recompôs-se e atendeu. Era o porteiro da noite querendo saber o que estava ocorrendo, pois diversos vizinhos haviam ligado reclamando do barulho. Adalberto tranquilizou o porteiro garantindo que não faria mais aquilo. 

Adalberto não tinha muitos amigos. Deprimido e recluso, foi se fechando em si mesmo e acabou esquecido. Nem mensagens pelos apps ele trocava mais. As poucas que recebia não respondia. Nesta nova fase, ele até deu uma olhada nas mensagens mais recentes, mas preferiu não retornar, agora só tinha uma coisa na cabeça: queria ver o rapaz de olhos azuis em carne e osso. Pesquisou, pesquisou e viu que o próximo show do moço seria dali a quinze dias em Barcelona. Ficou alvoroçado. Como tinha ficado recluso os últimos meses sem quase gastar nada de sua aposentadoria, Adalberto tinha algum dinheiro no banco. Checou seu saldo e levantou todas as informações de voos, hospedagem, ingressos para o show. Viu que dava, ia ficar meio apertado de grana, mas dava. Iniciou então os preparativos. Quando desembarcou no aeroporto de Barcelona, Adalberto sentiu um aperto no peito. Ficou com as mãos geladas e o percurso até a retirada das bagagens lhe pareceu uma eternidade. Quando chegou ao quarto do hotel, se jogou na cama e adormeceu. Sonhou com o rapaz de olhos azuis requebrando-se diante dele. Adalberto acordou sobressaltado de pau duro. Correu até o banheiro e se masturbou. Foi um gozo frenético, de gemidos altos e longos. Quando se refez, encheu a banheira e mergulhou na água tépida com prazer. Agora era esperar o dia seguinte para ir até o Parc del Fòrum onde o show aconteceria. Quando colocou os pés no parque e viu a multidão que caminhava em direção a área de shows, Adalberto ficou apreensivo. Não imaginava um lugar tão amplo e tantos fãs. Embora tenha chegado duas horas antes do início da apresentação já encontrou a área em volta do palco repleta de meninas e meninos em polvorosa. Não demorou muito para perceber que ele era um estranho no ninho. Então respirou fundo e foi furando o mar de gente. De passo em passo, chegou o mais perto possível. As pernas tremiam e sua respiração estava ofegante. As lembranças dos videoclipes e das canções o mantinha de pé. Quando vieram os primeiros sinais de que o show ia começar esqueceu do seu corpo cansado. A voz do rapaz de olhos azuis ecoou pelo parque, a gritaria dos fãs crescia exponencialmente até que, envolto em luzes lilases, seu amado surgiu … eu preciso de uma amante para me manter são/ Tire-me do inferno, traga-me de volta… Adalberto chorou… enquanto você está me trazendo de volta à vida/ eu só quero viver este momento para sempre… você é meu anjo/ eu me apaixono pelas pequenas coisas… Adalberto olhou extasiado para o moço, cerrou as pálpebras e sentiu seu corpo em queda livre, atravessando uma grande janela luminosa. Nesse momento teve certeza de que a vida era uma tolice. Morreu feliz.

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