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Ilustração: Biu da Silva.

Conto: Heile Welt

Lembranças e realidades se entrecruzam entre a frieza melancólica de Berlim e o bafo quente de Recife

Atenção: o conteúdo a seguir é impróprio para menores de 18 anos.

Nos primeiros dias do outono, Augusto estava mergulhado em um estado de profunda melancolia. A chegada dos dias cinzas e do vento frio interferiam no seu estado de espírito. Até as folhas amareladas que começavam a dar o tom da estação eram para ele um ativador de lembranças que ele gostaria de expurgar de sua mente. Foi naquela mesma época, há dois anos, que Hans disse-lhe de uma forma fria, beirando a indiferença, que não o amava mais. A decisão foi enunciada sob um frondoso carvalho na floresta de Grunewald, após um passeio para colher cogumelos. Augusto recordava-se do solo alaranjado sob seus pés e como aquelas folhas caídas passaram a simbolizar os oito anos dedicados ao cultivo daquele amor por ele julgado eterno e que, em poucos segundos, desaparecia de seu horizonte. 

Desde então, a solidão passou a ser a companheira predileta de Augusto. A insistência de Hans para continuarem amigos pelos anos passados juntos foi rechaçada com firmeza. Para Augusto não existia a menor possibilidade de transformar um sentimento tão intenso em mero companheirismo. Isso estava fora de questão. Cortou totalmente os laços com Hans e, depois de duas semanas, num acesso de ira, destruiu o seu smartphone. Nem mesmo dos amigos em comum, ele queria notícias. Passou a esquivar-se de encontros e locais onde pudesse esbarrar por acaso com Hans. Sabia que não suportaria vê-lo com um novo companheiro, feliz e sorridente, enquanto ele ruminava uma dor dilacerante que ainda não dissera adeus. Sua vida sexual também estava aniquilada. Contentava-se em dar voltas nos parques e masturbar desconhecidos nas trilhas ermas onde esse tipo de prática era comum. 

Naquele dia, porém, estava com vontade de beber. A ameaça de chuva não estimulava ir a um parque. Um drinque com bebidas fortes o faria se sentir menos triste. Porque não eram apenas as lembranças de Hans que o deixavam acabrunhado. Seus pensamentos tinham voado ainda mais longe. Atravessara o oceano. Pousara nas ruas do Recife quase dez anos antes, quando nem lhe passava pela cabeça viver num país tão distante. Reviveu as impressões marcadas em seu cérebro do bafo quente das ruas ensolaradas, do cheiro de mangue das margens do Capibaribe, da água morna das praias da Ilha de Itamaracá e lembrou como era bom ficar de sunga estirado na areia fumando um baseado com Tulio e Fefeu, despreocupado, conversando leseira. Aos poucos, as lembranças, no entanto, aqueceram seu corpo encurvado na tentativa de se proteger do vento que aumentara. Onde estariam os seus amigos agora? Sempre fora uma pessoa risonha, brincalhona e bem-humorada e agora não passava de um traste ambulante. 

 Desde que colocara os pés em Berlim, entusiasmado com as novas possibilidades que se descortinavam diante dele, Augusto foi apagando da memória os fatos corriqueiros de sua vida pregressa, os pequenos prazeres, os sabores, os cheiros, os sons, e quando se deu conta estava pensando em outra língua, desbravando outra forma de viver, decifrando os códigos de uma cultura que precisava entender para sobreviver. E Hans apareceu e o envolveu ainda mais naquele admirável mundo novo. Por vezes sentia uma certa nostalgia, se achava ingrato com suas raízes, mas partira entristecido com seus conterrâneos. Não conseguira perdoar a insensibilidade e pouca solidariedade das pessoas de sua terra natal diante da miséria crescente e do aprofundamento do abismo social no qual a maior parte da população estava submetida. Ao mesmo tempo, punia-se por ter partido em vez de ficar e lutar. 

As pequenas recordações daquele momento, todavia, tiveram um impacto inesperado em Augusto. Era como se estivesse experimentando uma epifania. A compreensão da essência do seu sofrimento em que o passado distante dá um golpe no passado recente e abre uma fresta de luz no presente. As boas recordações reapareceram em seu espírito. Pequenos flashes dos rapazes que namorou, das trepadas com Lucio, um rapaz por quem ele era louco, levaram-no, pela primeira vez em muitos meses, a rir consigo mesmo.  Finalmente esqueceria Hans? Uma lufada de ar frio o despertou, olhou para sua imagem refletida em uma vitrine e achou-se menos sorumbático. Percebeu então que estava na Motzstrasse, tinha perambulado tanto sem rumo que fora bater em Schönemberg. Teve vontade de beber cachaça e lembrou que ali perto havia um bar, o Heile Welt, que oferecia aos clientes bebidas de várias procedências.

Augusto entrou no bar quando os primeiros pingos de chuva começaram a cair. O lugar era aconchegante e ouvia-se, vindo do fundo da sala, o som de uma velha canção alemã tocada em um piano. Havia poucas pessoas. Os bares gays em geral só ficavam mais cheios depois das dez da noite.  Ele encostou no balcão e foi direto: “Einen Schnaps bitte!”. O barman apontou para uma série de garrafas do seu lado direito e entre elas lá estava uma garrafa de Pitú. Perguntou se queria que preparasse uma caipirinha, mas Augusto queria matar saudade do líquido de sabor adocicado que desce queimando a boca e a garganta. “Eine reine Dosis”. O barman riu e colocou a dose pura da aguardente num pequeno copo e serviu Augusto. Ele perguntou ao barman porque o bar se chamava Heile Welt (Mundo Puro). O rapaz explicou que a expressão vinha de um poema chamado Die Heile Welt, de Werner Bergengruen, no qual o poeta afirma a sua confiança de uma volta ao paradisíaco, ao mundo original, um mundo capaz de se reestabelecer e renovar depois da destruição da guerra. 

Augusto experimentou alegria ao ouvir o relato e aquilo o inspirou a pedir uma outra dose. O mesmo pedido foi repetido ainda quatro vezes. Em meia hora, Augusto estava levemente embriagado. Notou então que um homem de olhos azuis e cabelos avermelhados olhava para ele. Augusto não hesitou e ofereceu uma dose ao estranho. O homem aproximou-se, o barman colocou duas doses de Pitú, eles brindaram e beberam a cachaça em um único gole. Logo engataram uma conversa. Augusto falou da repentina saudade que estava sentindo do seu país, algo que não acontecia há muitos anos e como aquele sentimento, ironicamente, o estava afastando do baixo astral em que estivera mergulhado por dois anos por causa de um amor que partira. O estranho riu e revelou que não estava muito diferente de Augusto. Seu nome era Jacek e ele era polonês. Sua tristeza, porém, não era fruto de uma relação desfeita. Jacek era ator e tinha vindo morar em Berlim para trabalhar em cinema. Durante alguns anos tinha conseguido bons papéis secundários e trabalhado também na televisão, mas com 45 anos de idade, começou a receber menos chamados e agora fazia pontas ou apenas figuração em séries televisivas, e isto estava tornando sua vida difícil e o levando a pensar em voltar para Cracóvia, sua cidade natal. Augusto achou o polonês um homem atraente. Seu rosto era forte e expressivo. E quando Jacek o convidou para irem até seu apartamento, Augusto aceitou.

Augusto estava um pouco trôpego e caminhou com certa dificuldade até o carro de Jacek, estacionado numa rua próxima. Ao entrar no carro, uma Mercedes com bons anos de uso, Augusto não percebeu que havia outro passageiro dentro do veículo. Quando fecharam as portas foi que ele notou um enorme cão da raça Golden Retriever de pelo dourado escuro no banco traseiro. “Das ist Felka”. Felka cheirou o pescoço de Augusto duas vezes e voltou a sentar no banco. Jacek tinha um pequeno apartamento não muito distante em Kreuzberg. Em poucos minutos eles chegaram em frente a um prédio um pouco deteriorado pela ação do tempo. Antes de descerem do carro, Jacek revelou a Augusto que era soropositivo. Disse-lhe, de forma serena, para ele sentir-se à vontade se não quisesse continuar. Para ele não seria um problema, pois já estava acostumado com as desistências. Embora ainda estivesse meio tonto com o efeito da cachaça, Augusto estava consciente da situação. Disse a Jacek que aquilo não era um empecilho para eles ficarem juntos desde que eles tivessem cuidado. O polonês garantiu não praticar penetrações, limitando-se a masturbar os parceiros. Para quem tinha como única forma de prazer, nos últimos meses, punhetas entre os arbustos dos parques, fazer a mesma coisa só que em uma cama quentinha, era até uma conquista.

O apartamento de Jacek era pequeno, mas aconchegante. Na sala havia duas grandes poltronas vermelhas onde eles sentaram e conversaram sobre teatro e cinema enquanto bebiam doses de vodca polonesa. Felka acompanhava tudo deitado aos pés de seu dono. Jacek pegou então as mãos de Augusto, levou-as até seu rosto e as beijou. Levantou-se e conduziu Augusto até o seu quarto. Felka também se levantou e os seguiu. Augusto começou a ficar incomodado com a presença do cão no quarto. Jacek acendeu um pequeno abajur, eles se despiram e deitaram na grande cama de casal que ocupava quase todo o espaço do pequeno quarto onde, além da cama, tinha duas estantes com livros e bibelôs e muitos quadros e pôsteres de filmes colocados nas paredes. Felka também subiu na cama e permaneceu olhando atento para cada movimento dos dois homens. Augusto fez uma expressão como se indagasse a Jacek se Felka continuaria ali. O polonês disse para Augusto não se preocupar.  

Augusto voltou a lembrar da sua vida no Recife quando, certa vez, voltando para casa, passou pela frente de um edifício em construção e puxou conversa com o vigia da obra. Conversa vai, conversa vem, o vigia o convidou para entrar no canteiro de obras. Um cachorro que estava deitado na entrada os acompanhou. Entraram num local que seria o hall de entrada do futuro edifício, encostaram numa coluna e começaram a bolinar. O vigia pediu para que ele ficasse de costas, arriou sua calça e o penetrou. O cachorro ficou atento à movimentação e quando Augusto gozou e ejaculou, assim que a porra bateu no piso, o cachorro foi lá e lambeu tudo. Augusto nunca esqueceu da cena. 

Jacek começou a acariciar o pau de Augusto que, logo ficou excitado. As mãos do ator polonês trabalhavam com perfeição de forma cadenciada. Augusto notou que as mãos de Jacek eram grandes, quentes e de palmas macias. Mesmo sem usar nenhum creme, seus dedos deslizavam pelo pênis de Augusto e fazia movimentos alternados, ora bem rápidos e vigorosos, ora suaves com pequenos apertos no prepúcio. O líquido que lubrifica a uretra começou a escorrer e Jacek o espalhou pela cabeça do pau de Augsuto delicadamente, movimentando os dedos em círculos. Quando Jacek sentia o membro de Augusto enrijecer ainda mais, anunciando que o gozo estaria próximo, ele diminuía a pressão e começava tudo outra vez. Ninguém nunca tinha feito aquilo em Augusto com tanto esmero. O clima de êxtase só era quebrado quando ele abria os olhos e se deparava com os olhos de Felka atento ao que estava acontecendo. Augusto não conseguia esquecer do cachorro da obra. Começou a se indagar se quando ejaculasse, Felka não iria abocanhar sua rola para beber o leite que iria jorrar. A ideia da língua de Felka lambendo seu pau não lhe agradava muito ou, ainda pior, seu pau sendo lacerado pelos dentes afiados do cachorro. E Jacek, como se adivinhasse o que estava passando pela cabeça de Augusto, além do pau, começou a massagear os seus culhões deliciosamente. Augusto não aguentou mais, deu um pequeno grito prolongado e gozou. Mesmo inebriado, abriu os olhos e procurou Felka. O cão, para seu alívio, continuava lá, impávido. Jacek prosseguiu os movimentos, agora com suavidade e, aos poucos, foi parando. Pegou então uma toalha de papel umedecida e limpou delicadamente o pau de Augusto. Cachaça, vodca polonesa e mãos aveludadas jogaram Augusto nos braços de Morfeu. Sonhou que estava no mar e um peixe colorido se aproximava dele. 

Ao acordar e abrir os olhos a primeira imagem que Augusto viu foi Felka ao seu lado. Jacek já estava de pé e perguntou se ele queria acompanhá-lo no café da manhã no Kreuzberg Markthalle Neun. Augusto topou. Tomou um banho, vestiu-se e com a fiel companhia de Felka foram caminhando até o mercado. Diferente da tarde anterior, o dia estava luminoso e Augusto prometeu a si mesmo botar a amargura para correr de vez de sua existência. Sentaram numa mesa ao sol e, enquanto esperavam, serem atendidos, ele divisou ao longe a silhueta de Hans próxima a um quiosque de frutas. O primeiro ímpeto foi levantar-se e ir até lá, mas lembrou da promessa que acabara de fazer. Virou-se para Jacek e perguntou a primeira coisa que passou pela cabeça, se ele conhecia o cineasta Rosa von Praunheim. Jacek respondeu haver trabalhado em um de seus filmes. Os olhos de Augusto brilharam e a conversa foi longe. 

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