Carlabê
Isabela Noronha
Companhia das Letras, 200 páginas, R$ 79,90 | 2024.
Certas histórias permitem múltiplas abordagens, cada uma revelando diversas perspectivas. Tal engenhosidade parte de uma narrativa criativa que, quando bem estruturada, conduz o leitor a uma experiência singular. Para alcançar esse efeito, é necessário descontruir a trama e, ao reorganizar suas peças, revelar uma nova jornada. É quase um exercício mental.
Algumas narrativas não exigem um formato convencional — ou, em alguns casos, nenhum formato específico. A entrega facilitada dos fatos é deixada para trás, enquanto a concentração é colocada em primeiro plano. Em Carlabê, romance escrito pela jornalista e mestre em escrita criativa Isabela Noronha, o leitor é desafiado a imergir na leitura em meio ao barulho incessante da grande metrópole. Por meio de uma estrutura ousada, a narrativa se desenrola em dois únicos formatos: áudios e cartas.

A obra aborda a complexidade de uma amizade permeada por segredos, cumplicidade e pela sutil violência do cotidiano urbano. Quando Carlabê desaparece, deixando apenas um caderno de cartas, sua amiga Saramara inicia uma busca por seu paradeiro no bairro de Santa Cecília, em São Paulo.
Acompanhada por um suposto jornalista que grava suas conversas, Saramara tenta desvendar o mistério do desaparecimento, potencialmente ligado a um corpo encontrado nas ruas. Alternando entre a narrativa em primeira pessoa de Saramara e as cartas de Carlabê, o livro explora as lacunas da comunicação e os desafios de se conectar com o outro em meio ao caos urbano.
Nossa conexão mais forte é, inevitavelmente, com Saramara. Seus áudios são constantemente interrompidos por buzinas, tosses persistentes e sons ininteligíveis. Mesmo em meio a esse caos, ao qual a personagem parece estar habituada, o leitor é conduzido por uma busca incessante por respostas. Nada é oferecido de maneira imediata. O leitor se vê no lugar do jornalista, ansiando por respostas que chegam apressadas. Saramara diverte-se, sugerindo que o rapaz silencie as notificações de seu editor. Somente assim o processo de concentração, e acima de tudo, paciência, será facilitado.
A cidade, o que ela quer dizer, jovem? Este barulho, o som, não para, ela não permite silêncio. Ou pior: o que ela cala com seus gritos?
As cartas de Carlabê, escritas para o seu irmão, revelam uma inquietação crescente. Saramara assume a tarefa de desvendar as memórias contidas nelas, que, juntas, formam a trama central. O afeto transborda em cada linha, desenhando uma conexão única e, por vezes, confusa entre as duas amigas. O desejo por clareza é constante, e a informação se apresenta de forma fragmentada, exigindo que o leitor ignore o barulho ensurdecedor da cidade para captar o que realmente importa.
Há uma melancolia sutil na maneira como Saramara relembra sua amiga. Aos poucos, a personagem revela aspectos de si, equilibrando angústia e firmeza. Esses elementos se mesclam harmoniosamente com um humor sagaz, que mantém a narrativa fluida e envolvente até o último momento.
Isabela Noronha explora ao máximo a potência de uma narrativa criativa, convidando o leitor a participar ativamente na construção dos fatos. Há uma urgência latente que emerge do próprio instinto de quem lê. Carlabê é, sem dúvida, uma obra destinada àqueles raros momentos de silêncio, quase inexistentes na rotina agitada.