A ingovernável Kate Del Castillo

FF Ingobernagle
Ingobernable
EmiliaUrquiza DiegoNava
Kate-Urquiza em cena de violência com o marido, Diego Nava (Erik Hayser).

Lançada como drama político, Ingobernable, a segunda série mexicana original da Netflix – depois da dramédia Cuervos, sobre um time de futebol – é na verdade um thriller de suspense em que a política entra como cenário. Assim como aconteceu com a brasileira 3%, a série de Castillo foi lançada simultaneamente 190 países, estratégia inovadora da Netflix, que pretende trabalhar cada vez mais as produções regionais em outros mercados, expandidos via seu algoritmo global. A HBO nem sempre passa as produções locais em seus canais a cabo.

A trama traz como protagonista absoluta a personagem Emilia Urquiza, interpretada por Kate del Castillo que se tornou mundialmente popular como a estrela da narcossérie A Rainha do Tráfico (La Reina del Sur), da Telemundo. Urquiza é a primeira-dama do México que planeja tornar seu país um lugar melhor para todos por meio de uma instituição, a Cenapaz. Ao longo da sua luta para preservar a ordem num panorama repleto de crimes e chacinas ocorridas por conta de uma aliança entre o narcotráfico, milícias, exército, empresas estrangeiras, o governo e até a CIA, ela passa a suspeitar de seu próprio marido, o presidente Diego Nava (Erik Hayser). Em pleno processo de separação, eles têm uma briga, ele aparece morto e ela é suspeita de assassinato, convertendo-se numa innocent on the run, um tipo de personagem clássico de thrillers de suspense, em que a protagonista é acusada de um crime que não cometeu e tem de fugir para provar sua inocência, pois corre risco de vida.

Esses ingredientes estão todos no primeiro episódio – são 15 ao todo – e ao longo da série assistimos a cenas de adrenalina pura com milícias, coletivos feministas na periferia – as Guerreiras (cabronas) de Pepito –, sexo com pitadas melodramáticas. A trama começa com thriller de suspense, mescla recursos de dramas prisionais, de filmes de ação e espionagem. Apesar das cenas tórridas, Emília está longe da mocinha clássica, ela tem projetos políticos que não necessariamente incluem seus parceiros, como podemos ver pelo violento episódio inicial. A narrativa pode ser bem hollywoodiana, mas os personagens são extremamente latinos, nas suas reações, na sua passionalidade, e na sua dramaturgia única. No entanto, a relação entre a protagonista e sua filha, assumidamente homossexual, sugere que Urquiza nem sempre se pautou pelo discurso revolucionário e que há lacunas em sua relação com a garota, como muitas vezes ocorre na vida real entre mãe e filha.

Urquiza
Urquiza protagoniza cenas de pura adrenalina ao longo do thriller

Os fatos políticos apresentados na série, totalmente ficcionais, guardam, entretanto, relação estreita com fatos ocorridos na realidade. O México é um pais de contrastes, violento, com uma diversidade étnica e cultural deslumbrante, que é explorada de forma implícita na primeira temporada. A ascendência indígena está confinada ao bairro pobre, os brancos de olhos azuis e semblante espanhol circulam pelo Zócalo. O sumiço dos jovens de Pepito em uma invasão criminosa faz lembrar remotamente os 43 estudantes de Ayotzinapa, região de camponeses pobres. Na noite de 26 de setembro de 2015 os jovens foram sequestrados por policiais de Iguala por ordens do então prefeito, José Luis Abarca. Segundo os depoimentos de mais de uma centena de detidos (traficantes de droga, policiais e autoridades corruptas), os jovens teriam sido entregues ao cartel Guerreros Unidos, que teriam assassinado e incinerado as vitimas em um lixão do município de Cocula. Nada ficou provado.

As Guerreiras de Tepito, que existem e resistem na verdade, embora não como uma tropa, representam a coragem de lutar daquelas mulheres, que se reconhecem como oprimidas, indígenas e pobres, e lutam para melhorar a sua condição, como ocorre com a Citlali López, a Mosca (Mitizi Mabel Cadena), campeã de luta livre, um dos esportes mais populares do México, e que se torna vítima das milícias e do exército, indo parar num presídio clandestino.

Obrigada a viver na clandestinidade, Castillo-Urquiza vai acabar caindo nos braços do jovem Caneq Lagos, interpretado pelo ator cubano radicado Alberto Guerra. Ambos vivem uma paixão tórrida e sem perspectivas de futuro, com o rapaz, ex-convicto, na função de Cinderela. Na medida em que a trama avança, percebe-se que vai ser difícil para a nossa heroína, que em sua luta para restaurar a verdade vai perder a sua visão utópica e ingênua de paz, voltar a ter uma vida normal.

Chela Caneq Lagos
Chela e Caneq, os aliados de Urquiza.

Aliada às Guerreiras de Tepito, lideradas pela fantástica Aida Lopez, como Chela, e ao seu amado Caneq, Urquiza protagoniza cenas de ação de fazer inveja a Jack Bauer. Pura pirotecnia e ficção.

A série passa no Teste Bechdel fácil, e no Chavez-Perez também, o que é raro para uma série mexicana, em que normalmente os personagens de etnia indígena não têm nenhum papel. A única exceção corre por conta justamente da querela matrimonial que serve como estopim para a ação. Se na realidade o sr. Nava fosse mesmo um gângster, seria mais fácil de justificar a forma violenta como ele resolve suas diferenças com a mulher. De qualquer forma, imperdível. Apesar de embalada por cenas de ação que lembram séries hollywoodianas do gênero, a série preserva suas características latino-americanas e mexicanas tanto na trilha, embalada pela canção-título “Me verás”, da banca mexicana radicada em Los Angeles La Santa Cecília, quanto na paleta de cores e na dramaturgia, inconfundível, e que lembra as telenovelas. Ingobernable é também, como lembrou Castillo em entrevista, o próprio México, com seus contrastes violentos.

A série é uma criação em parceria de Verónica Velasco, da filha Natasha Ybarra-Klor e de Epigmenio Ibarra, sócio da Telemundo naquele país, e também criador da série da HBO Capadócia. E como a arte às vezes imita a vida, parte das cenas de Tepito, um bairro popular e emblemático da Cidade do México, se passaram na realidade em San Diego, por conta dos problemas de Castillo com o governo mexicano, o que a obriga a viver em Los Angeles. Em 2016, a atriz intermediou um encontro entre o ator Sean Penn e o narcotraficante Joaquín “El Chapo” Guzman, preso após o episódio, e foi convocada a depor pela justiça mexicana. A série já teve a segunda temporada confirmada. Veja o trâiler.

https://www.youtube.com/watch?v=yU0r5cmY13k

 

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