Luiz Melodia – No Coração do Brasil
Alessandra Dorgan
BRA, 2024. Documentário. Distribuição: Embaúba Filmes
Luiz Melodia era, segundo ele mesmo, um compositor “da perifa do Rio”. Essa definição simples mostra um nível profundo da autoconsciência que Melodia tinha com relação à sua arte, e é a partir desse ponto que o documentário Luiz Melodia – No Coração do Brasil começa a contornar a figura de um dos maiores cantores e compositores da MPB.
Com pouco mais de uma hora, o filme toma para si a tarefa difícil de dimensionar quem foi Melodia como artista, do seu surgimento ao seu legado, e para isso foi escolhido o melhor narrador possível: ele mesmo. É a partir dos fragmentos de entrevistas e apresentações do compositor carioca que o filme ilustra a caminhada dele rumo ao reconhecimento nacional e internacional.
Nascido no Morro de São Carlos, na divisa com bairro do Estácio, no centro do Rio de Janeiro, Luiz Melodia conheceu a música ainda criança por influência do pai, Oswaldo Melodia – de quem também pegou o nome artístico -, e do lugar onde nasceu. Como um artista periférico, sobretudo vindo do Estácio, lugar emblemático para o samba, Melodia foi um alvo frequente da mídia e do mercado para que criasse sua imagem como um sambista, no entanto, o artista sempre quis mostrar-se mais que isso, viajar por outros gêneros ao mesmo tempo em que mantinha suas raízes, algo que fugia à compreensão da indústria musical da época; uma questão explorada com perfeição pelo documentário.

Com a riqueza de materiais e registros reunidos, edição inteligente e um roteiro sucinto, o filme consegue criar um equilíbrio sincero entre a versão do próprio Luiz Melodia de sua história e dar espaço para as discussões sobre carreira; embates entre artista e mercado e questões raciais que não seriam dadas a devida importância anos atrás, mas que sempre estiveram presentes no discurso e na arte de Luiz Melodia.
Obviamente que não seria possível fazer um filme sobre um cantor e compositor sem suas músicas, e esse é outro trabalho bem executado no filme. Aqui as músicas também contam a história e ajudam o roteiro a localizar em qual ponto da vida de Melodia estamos entrando, ou nos informa o que o roteiro quer que saibamos como espectadores, principalmente quando não há uma entrevista ou gravação específica sobre determinado período.
Como alguém que escuta música e estuda também os seus impactos na comunicação social, digo com propriedade que Luiz Melodia – No Coração do Brasil é um material rico para quem quer, além de estudar o próprio cantor, entender um pouco mais sobre a história da música afro-brasileira e sobre as relações delicadas que cercam o artista negro, o mercado e a relação do público brasileiro com a música. O filme consegue traduzir de maneira habilidosa o significado da renúncia de Melodia às imposições do mercado enquanto um artista negro e periférico.

Na sua mistura de música negra do Brasil com música negra norte-americana – mistura essa eternizada no álbum Pérola Negra (1973) – , Luiz Melodia se tornou um artista boicotado pelas gravadoras, que esperavam alguém que pudesse ser vendido como a “a voz do morro”. Sem o espaço no mercado tradicional, o cantor criou brechas para manter-se popular de maneira independente, e fez de si um contra-ponto dentro da MPB brasileira e sua dinâmica comercial; outra perspectiva captada de forma certeira pelo filme.
Luiz Melodia no Coração do Brasil é um documentário que transcende a biografia convencional ao capturar a essência de um artista profundamente coerente consigo mesmo e com sua arte. Através de uma narrativa sensível e habilmente estruturada, com a própria voz de Melodia guiando sua história, o filme destaca sua trajetória como um músico que rejeitou rótulos e desafiou expectativas, mantendo uma conexão inabalável com suas raízes no Estácio.
Leia mais críticas
- “Plainclothes” é um suspense gay erótico com um toque de “Sundance”
- “By Design”: Juliette Lewis se torna uma cadeira em comédia apática sobre os dias atuais
- “Emilia Pérez”: apesar do espetáculo visual, olhar de Jacques Audiard é superficial e simplista
- “Kasa Branca”: a favela enquanto lugar de afeto
- “A Verdadeira Dor”: a tragicomédia psicanalítica de Jesse Eisenberg