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Lirinha retorna cósmico e metalinguístico no disco MÊIKE RÁS FÂN

Baseado na sonoplastia da Rádio Drama, artista compõe um trabalho inventivo baseado na expansão cósmica e interplanetária da mente

Lirinha retorna cósmico e metalinguístico no disco MÊIKE RÁS FÂN
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Lirinha
MÊIKE RÁS FÂN
Independente, 2023. Gênero: mpb, pop

Ouvir MÊIKE RÁS FÂN, nas propostas de seu autor Lirinha, é sintonizar uma estação de rádio. E através dela, embarcar numa viagem para bem longe, distante da Terra. A estação, nomeada com o título do disco, é cósmica, formada num campo interplanetário, poeticamente forjada na fertilidade da imaginação, da inventividade.

A estação cósmica constrói a base narrativa do terceiro disco da carreira solo de José Paes de Lira, um dos artistas mais inventivos na cena brasileira. Natural de Arcoverde, sertão de Pernambuco, Lirinha se relaciona com a poesia desde muito cedo, o que resulta na performance poética-musical ao longo de seus projetos assim como neste lançamento.

Idealizador e integrante do grupo pernambucano Cordel do Fogo Encantado, Lirinha também traz como marcos da carreira composições para artistas como Gal Costa, Céu, Pitty e Natiruts, trilhas sonoras de filmes como Lisbela e o Prisioneiro e Piedade, além do lançamento de livros e assinaturas como diretor artístico. Toda essa carga de experiências flui junto a criatividade e a sagacidade em sua jornada solo, a qual já lhe rendeu os discos LIRA (2011) e O Labirinto e o Desmantelo (2015).

Lirinha por Thaís Taverna 02
Lirinha retorna interessado pela metalinguagem do rádio. (Foto: Thaís Taverna/Divulgação).

Elaborado entre 2020 e 2022, MÊIKE RÁS FÂN é uma experiência multilinguística partindo dos expoentes da música, da poesia, dos efeitos sonoros e da performance da voz, o que também se atrela às habilidades cênicas teatrais. Tais elementos partem de uma pesquisa dedicada do artista ao universo da Rádio Drama. Aliás, as oito faixas que integram o disco servem também como uma abertura para este projeto que orbita na temática da Rádio Arte, através de um podcast, com intenção de ser lançado em breve por Lirinha.

Ao longo dos anos, o rádio permanece revelando-se como uma inovação disruptiva, resistente às concorrências de outros veículos e suportes técnicos que surgiram e surgem, e se impõe como potente comunicador. Antes mesmo das novelas invadirem a TV no Brasil por exemplo, era na rádio onde a dramaturgia tinha vez, através das radionovelas, grande expoente deste modal nos anos 1940. O propósito desses produtos era fazer com que o ouvinte se sentisse imerso na cena, sem precisar do estímulo visual.

Nesta atmosfera de imersão e exploração sensorial, Lirinha estrutura sua “grade de programação”. O disco traz a relação e as trocas entre a poesia e a música, em seu canto e arranjos, como em “Estrela Negríssima” com Gabi da Pele Preta, que abre as alas da jornada, e enigmática convida para um mergulho no universo interplanetário do artista.

Assim como em “No Fim do Mundo”, recitando um poema de Micheliny Verunschk, sobre os 15 anos do atentado no World Trade Center, traçando nesta releitura uma análise sobre as mudanças que atingem a sociedade num verniz de paixão e sentimentalismo. O arranjo instrumental desta faixa conta com a participação das harmonias vocais de Sofia Freire.

Na expansão das propostas, Lirinha também traz “Oyê”, guiada por um choro precioso de sanfona ao longo da faixa. É uma atmosfera de intimismo e sentimento. Aqui, o artista expressa a perda de seu pai, ao mesmo tempo que evoca com paixão, o retorno, a permanência de uma história que não chegou ao fim, transcendente. A composição nasceu de um arranjo conjunto com Orlando Melo e conta com o coral de Dan Maia no refrão.

O disco abraça essa caracterização de estação radiofônica em momentos sutis e concepções ilustres. Como em “Bebe”, trazendo a participação de Nash Laila. A canção é um abalo sensorial, declamando um poema que através de efeitos faz produzir a voz em ondas sonoras e desenha cenários neste propósito de imersão do ouvinte. Assim também em “Mesmo” com participação de Lana Balisa com o zapear da rádio na introdução, em “Amor Vinil”, que extrapola a típica relação entre um ouvinte solitário e a voz comunicadora. Essa voz é de Iara Rennó que canta enquanto é respondida por seu ouvinte nesta espécie de conversa indireta e bem apaixonada.

E ainda, em “Antes de Você Dormir”, com uma espécie de má sintonização na introdução, narrada pela voz de uma Inteligência Artificial. A faixa dialoga sobre o entrelugar do sono e a consciência, finalizando a sequência do álbum com uma última viagem da mente num conceito de que no sono, deixamos de ser nós mesmos para fazer parte da composição total do espaço, onde é possível acessar as emoções.

A estação fictícia é o espaço que Lirinha se debruça neste trabalho e sua dedicação como pesquisador da arte faz desse disco um estudo interessante das possibilidades musicais em tempos de forte concorrência e alta rotatividade trazida pelo streaming. Obras que transcendem e extrapolam as noções do fazer música nos dias de hoje ainda são raras, dado que a maior parte dos artistas seguem o fluxo intenso ditado pela indústria (seja um artista independente ou um contratado de uma grande gravadora, o ritmo exigido é o mesmo). MÊIKE RÁS FÂN tenta correr por fora desse mercado por trazer além da música, uma metalinguagem que busca diálogos com a literatura e experimentações radiofônicas. É sintonizar e viajar.

Ouça Lirinha – MÊIKE RÁS FÂN

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