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A HQ é a primeira obra de Joe Ollmann a chegar ao Brasil. (Divulgação).

Joe Ollmann fala sobre a HQ Pai de Mentira: “Um livro sobre um bom relacionamento entre pai e filho seria chato”

Livro do autor canadense foca em um celebrado quadrinista que é um pai abusivo e ausente na vida privada: “Meu principal interesse está em histórias sobre pessoas”

O quadrinista canadense Joe Ollmann acha que não vale a pena tolerar comportamentos condenáveis de nenhum dito “gênio” em prol de qual arte for. Ele se coloca no grupo de pessoas com dificuldade em separar o artista da obra e exemplifica com os abusos do cineasta Stanley Kubrick (1928-1999) à atriz Shelley Duvall durante as filmagens do clássico O Iluminado (1980). Em entrevista ao site The Hollywood Reporter em 2021, ela expôs alguns dos excessos do diretor, citando as 35 filmagens de uma mesma cena com ela correndo, gritando e chorando enquanto carregava o pequeno Danny Torrance (Danny Lloyd) no colo.

“Fico chateado de verdade quando penso nele levando a pobre Shelley Duvall a quase um colapso mental”, diz o artista em entrevista por email à Revista O Grito!. “Tudo isso para fazer um filme de terror medíocre com alguns cenários realmente memoráveis? Vale a pena? Provavelmente não. Quero dizer, vá perguntar à Shelley Duvall”.

Com tradução de Érico Assis, Pai de Mentira (Comix Zone) é o primeiro livro de Ollmann publicado no Brasil e trata exatamente dos excessos e dos contrastes entre a vida pessoal e privada de um suposto “gênio” – no caso, um “gênio” da ficção, concebido por Ollmann. O quadrinho narra a vida de Jimmi Wyatt, criador da tira Chapa & Chapinha e amado por várias gerações de leitores, mas pai ausente e abusivo.

A obra é narrada pelo ponto de vista do filho de Jimmi, Caleb Wyatt, artista frustrado e assombrado pela fama do pai. Ollmann vai e volta na linha temporal concebida por ele para a família Wyatt, mostrando as falhas de Jimmi com o filho e a esposa e os dramas de Caleb como o herdeiro pouco inspirado de uma lenda da indústria do entretenimento.

Autor de uma paródia de sucesso da tira do pai durante sua juventude, Caleb chegou aos 50 e poucos anos bancado pela fortuna feita por Chapa & Chapinha. Ele divide sua rotina entre visitas a um grupo de alcoólatras anônimos, suas pinturas e buscas na internet por itens de colecionadores ligados à obra de seu pai. Enquanto isso, leva seu relacionamento apático com o comissário de bordo James.

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Cena de “Pai de Mentira”: “Eu gosto de coisas que estão enraizadas na realidade e se são meio tristes.” (Divulgação).

Carta de amor

Ollmann começou a desenvolver a história de Pai de Mentira em meio aos seus trabalhos como co-curador da exposição THIS IS SERIOUS: Canadian Indie Comics, dedicada à história das HQs canadenses, em cartaz na Art Gallery of Hamilton, na cidade de Hamilton, entre junho de 2019 e janeiro de 2020.

“Começamos a trabalhar nessa mostra quase dois anos antes da abertura, então por muito tempo eu estive completamente imerso em quadrinhos e pesquisas sobre quadrinhos”, me conta o autor sobre o ponto de partida da obra.

“Eu visitei muitos estúdios de cartunistas, olhando seus originais e falando sobre quadrinhos e eu realmente percebi o quão sortudo eu sou por fazer parte deste mundo. Então eu acho que isso me fez pensar em fazer um livro sobre quadrinhos. Por mais que o livro seja sobre um pai e um filho, também é uma carta de amor aos quadrinhos em geral”.

Baby boomers

Tiras de jornal como a fictícia Chapa & Chapinha sempre estiveram presentes na vida de Ollmann. Entre as suas preferidas na infância estavam Peanuts, de Charles M. Schulz (1922-2000) e The Family Circus, de Bil Keane (1922-2011) – e assinada pelo filho caçula e ex-assistente do autor, Jeff Keane, desde a morte do criador do quadrinho. As HQs protagonizadas pela turma de Charlie Brown, no entanto, seguiram com Ollmann após a juventude.

O autor diz sobre a obra de Schulz: “Peanuts ficou comigo, funciona em tantos níveis que cresce com você, é apenas uma tira engraçada quando você é criança, e quando você é mais velho parece um tipo de humor mais sofisticado, você entende melhor a compreensão de Schulz sobre a natureza humana e eu suspeito que quando eu for ainda mais velho e mais sábio vai me parecer um koan zen [narrativa budista com o propósito de levar à iluminação espiritual]. É uma tira muito perfeita”.

Ollman lamenta a perda de espaço de tiras como Chapa & Chapinha em publicações impressas. Ele só vê futuro para séries do tipo na internet. “Estão tornando os jornais fisicamente menores, o que torna, tanto os jornais quanto os quadrinhos, mais difíceis de ler para o público-alvo, que são os idosos. Quero dizer, os jornais estão lutando para sobreviver. Suspeito que, à medida que os baby boomers se extinguem, provavelmente também chegarão ao fim todos os meios de comunicação impressos. Eu sou mais velho, então não gosto de ler na tela do computador, mas há todo um outro mundo de quadrinhos diários sendo feitos na web, então os quadrinhos diários sobreviverão, apenas de outra forma”.

Por mais que o livro seja sobre um pai e um filho, também é uma carta de amor aos quadrinhos em geral”.

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Já a relação de Ollmann com o pai não poderia ser mais distinta que a dinâmica entre Jimmi e Caleb, protagonistas de sua HQ: “Nós nos dávamos muito bem. Eu sinto falta daquele cara todos os dias. Então, não há paralelo entre o Jimmi Wyatt e o meu pai. Acho que um livro sobre um bom relacionamento entre pai e filho seria chato. Quando meu pai estava doente, eu ia visitá-lo e ele foi um leitor de jornais a vida toda, incluindo os quadrinhos, e como ele tinha opiniões! Ele me fez voltar a ler tiras de jornais, e ele estava certo sobre quais eram as boas”.

Raízes na realidade

Pai de Mentira vai costurando a relação entre quadrinhos e a família Wyatt ao longo de suas 216 páginas. Um prólogo protagonizado pelo próprio Ollmann expõe um pouco do desenvolvimento da obra e de conversas com colegas de profissão que contribuíram de diferentes formas para o projeto. Ele foi alertado mais de uma vez sobre outras obras protagonizadas por quadrinistas fictícios, além de histórias reais semelhantes às tensões entre pai e filho que estão no cerne de seu trabalho.

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Capa da edição brasileira. (Divulgação).

O autor acabou incorporando à obra sua descoberta tardia sobre a relação turbulenta entre Hank Ketcham (1920-2001) e seu filho Dennis Ketcham, que inspirou o protagonista da também clássica Dennis, O Pimentinha. Após a morte de sua mãe, o Dennis da vida real foi mandado pelo pai para um internato nos Estados Unidos enquanto o pai vivia na Suíça com a segunda esposa. Distante de sua família, Dennis serviu na Guerra do Vietnã e sofreu durante toda a vida com transtorno de estresse pós-traumático.

“Meu principal interesse está em histórias sobre pessoas”, me diz Ollmann sobre o foco de seus trabalhos.

“Eu gosto de coisas que estão enraizadas na realidade e se são meio tristes. Ah cara, como isso me deixa feliz. Há exceções para mim. Às vezes leio coisas de gênero e gosto, mas sou atraído principalmente por coisas de gênero que estão arraigadas em personagens. Finalmente comecei a ler Junji Ito durante a pandemia e estou obcecado. Eu amo essas coisas, mas, novamente, são personagens fortes em meio a todo aquele horror”.

Tinta e papel

Ainda assim, os méritos de Pai de Mentira vão além da história e de seus personagens. Ollmann trabalhou com uma grade quase fixa de nove quadros por páginas, um padrão quebrado ocasionalmente por reproduções de tiras de Jimmi Wyatt e a exposição de memorabílias relacionadas à “franquia” Chapa & Chapinha. O predomínio de cores primárias (vermelho, azul e amarelo), sem excessos, enfatiza o tom documental da HQ.

Pouco afeito a novas tecnologias, Ollmann fez tudo à mão, com tinta e papel. “Geralmente desenho tudo em meus livros, logotipos, etc., tudo exceto o código de barras”, brincou. Ele se diz “um cara de texto e planejamento”, passando meses por conta de roteiro, edição e rascunhos antes de finalmente começar a desenhar.

“Penso no que Hitchcock disse sobre seus filmes, sobre a diversão estar na escrita e no storyboard, sendo a filmagem um exercício mais técnico. Eu sinto isso, mas ainda gosto muito desse processo de desenho”, ele me diz. “Uma vez que começo a desenhar, trabalho todos os dias, de oito a 12 horas por dia. Embora eu tenha ficado um pouco preguiçoso durante os lockdowns da Covid-19 e parasse muito cedo para ler quadrinhos e ouvir discos, o que provavelmente foi mais saudável. Essa merda toda de trabalhar até a morte por quadrinhos é loucura. Fique chapado e ouça discos!”.

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