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Na HQ O Grande Vazio, de Léa Murawiec, ser lembrado significa estar vivo

Obra vencedora em Angoulême questiona a necessidade por atenção no mundo atual em uma narrativa alucinante

Na HQ O Grande Vazio, de Léa Murawiec, ser lembrado significa estar vivo
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O Grande Vazio
Léa Murawiec
Comix Zone, 208 páginas, 2023, R$ 119,90
Tradução de Fernando Paz

O que te faz existir? Estar presente no mundo significa muitas coisas nos dias de hoje, mas ser percebido é talvez a maior evidência de que alguém existe. Tal premissa é levada às últimas consequências nesta HQ distópica da quadrinista francesa Léa Murawiec. O Grande Vazio mostra um mundo futurista em que a atenção é mais do que uma necessidade narcissística, mas uma questão de sobrevivência. A autora conta essa história com uma narrativa de visual estético ousado, até por vezes vertiginoso, e com um tom debochado e ácido.

Acompanhamos a história de Manel Naher, uma jovem que se vê em perigo ao descobrir que existe outra pessoa que tem o mesmo nome que o seu. E o pior, essa homônima é uma cantora de muito sucesso, com vários hits na boca do povo. Pensar em alguém neste mundo distópico significa existir, o que é conhecido como “presença”. Ter “presença” é ser lembrado, ter seu nome lido, falado, memorizado. Sem isso, a pessoa corre o risco de, literalmente, morrer. O anonimato não é uma opção e ter um homônimo famoso é igualmente perigoso.

A Manel Naher protagonista da história, inclusive, trabalha em um centro que se dedica a ler nomes de pessoas solitárias para mantê-las vivas. Leitora voraz, Naher prefere se enfurnar uma pequena livraria a ter uma vida social. Com poucos amigos, ela vai acabar sendo vítima desse sistema por não conseguir competir com a Manel Naher celebridade, que disputa “presença” por ter o mesmo nome.

Adoecendo cada vez mais por não ser lembrada o suficiente, Naher vê apenas uma única saída: desbravar o Grande Vazio, um espaço além da cidade colossal dos nomes e da qual ninguém jamais retornou. Tentando abandonar esse sistema angustiante, ela e seu amigo Ali planejam a fuga para essa terra inexplorada. Contar mais da trama a partir daqui estragaria toda a surpresa para o leitor, mas dá para adiantar que tais planos não sairão exatamente como o esperado e que muitas reviravoltas virão até o final, igualmente surpreendente.

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Tentar relacionar a narrativa de Léa Murawiec com a dinâmica das redes sociais atuais pode soar apressado em um primeiro momento, pois a trama é repleta de nuances. Vale mais a pena desfrutar todas as possibilidades de seu discurso do que tentar ancorá-la em uma problemática muito localizada. O Grande Vazio tem uma premissa que é também atemporal, pois discute a própria noção de sociedade, de pertencimento e da dinâmica das relações humanas.

O livro também aborda o sistema de celebridades, essas personalidades notórias que negociam sua persona pública com o público em troca de poder, influência, dinheiro, etc (o pesquisador Richard Schickel, nos anos 1980, os chamou de “estranhos íntimos”). Mas a complexidade maior dentro desse sistema hoje é que todos somos celebridades em alguma medida, uma vez que nossa persona pública, online, necessita cada vez mais de atenção, de polimento. Uma pessoa apartada de uma existência pública (online, portanto), existe de fato? Evidentemente que sim, mas em que condições? A vida será mais difícil, complicada? Ou na mesma medida, ao cruzar o Grande Vazio do anonimato, as pessoas são mais livres, relaxadas, felizes?

Léa Murawiec dialoga também com os estudos de Pierre Lévy, o filósofo que mais se debruçou sobre as vicissitudes da cibercultura, a era digital em que vivemos. Levy começou seus estudos falando das relações das pessoas com o ciberespaço e avançou para discutir o próprio conceito do real e do virtual e de como isso está cada vez mais diluído nos dias de hoje. É inexorável estar presente nesse espaço em que todos existimos e somos localizados digitalmente. E retornamos ao Grande Vazio pensado por Léa: mas o que há além disso?

A HQ levanta esses comentários sociais com sutileza, sem nunca alienar o leitor da sua leitura, que é deliciosa e repleta de passagens divertidas. Léa Murawiec tem um traço cheio de expressividade e flerta com um estilo figurativo, com personagens que vão ganhando ares de emoji em algumas situações.

Há também muita inspiração em animações antigas, o que dá uma ideia de movimento e dinamismo interesse ao quadrinho. E, claro, o mangá. Léa se diz fã de mangá desde muito nova e é possível perceber essa influência no ritmo da narrativa, nas cenas de luta e na expressividade dos personagens. Mas é no domínio da perspectiva que ela manda super bem. Algumas páginas chegam a causar vertigem ou mesmo alucinação com seus arranha-céus de nomes, suas paisagens opressoras de tipologias pintadas em azul e vermelho.

O Grande Vazio venceu Angoulême no ano passado

O Grande Vazio chega ao Brasil embalada pelo hype que a obra conquistou na França no ano passado, quando venceu o Prêmio do Público France Télévisions no Festival de Angoulême. Muito bom ver o quadrinho ser publicado por aqui tão rapidamente, sobretudo pelo fato de Léa ser uma artista tão nova.

Nascida em 1994, filha de pais artistas, Léa Murawiec se formou em design gráfico e estudou na Escola Superior da Imagem de Angoulême. É uma das criadoras do selo independente Flûtiste e autora de várias histórias publicadas em fanzines indies como Novland e Biscoto.

Apesar de ser uma obra de estreia, O Grande Vazio nos apresenta uma artista com ideias interessantes e um estilo muito próprio.

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