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Crítica: A delicadeza da memória em Aftersun

Longa de estreia de Charlotte Wells se dedica a encontrar magnitude no que parece banal

Crítica: A delicadeza da memória em Aftersun
5

Aftersun
De Charlotte Wells
EUA, 2022, 1h42 / A24 / Distribuição Mubi e O2 Play
Com Paul Mescal, Frank Corio

‘Amar é ultrapassarmo-nos’, escreveu uma vez o romancista e poeta irlandês, Oscar Wilde. Ele não foi o único nome grandioso do mundo das artes a se propor a definir o sentimento complexo, arrebatador, às vezes melancólico e soturno que é o amor. Desde que os seres humanos são seres humanos, a busca pela definição desse sentimento é desejada como se isso o tornasse menos bravio, selvagem. Esse sentimento ainda indefinido é objeto de artistas que dissecam suas propriedades invisíveis e através de produções mil, o amor extrapola e se condensa em produções artísticas emocionantes, capazes de fazer-nos acreditar sermos detentores do conceito a tantos séculos procurado.

Em seu longa-metragem de estreia, a cineasta escocesa Charlotte Wells consegue realizar esse feito de maneira perspicaz. Aftersun é uma obra sobre amor que acolhe em sua narrativa as dores da perda e a sensibilidade das emoções através de uma trama carregada de intimidade. Dirigido e roteirizado por Wells, o filme levou cerca de oito anos no total para ficar pronto e a história final funciona como um álbum de memórias pessoais da cineasta, uma vez que a história do filme se inspira na sua experiência pessoal.

Sophie (interpretada pela atriz estreante Frankie Corio) é uma menina de onze anos, filha de pais divorciados, que comumente passa suas férias de verão junto ao pai, Callum (Paul Mescal). No ano que a narrativa cinematográfica se desenvolve, pai e filha vão até a Turquia para aproveitar o verão explorando o resort e as maravilhas que o país oferece. É importante destacar que a obra não tem nenhum plot twist no final, um suspense obscuro ou uma cena feita com dramaticidade de novela para atiçar as lágrimas do espectador. Não, Aftersun não é esse tipo de filme, pelo contrário, é uma obra que se propõe a enxergar a magnitude naquilo que parece banal.

Sem muitos personagens, o espectador é convidado a mergulhar na atmosfera estreita do verão turco e observar com atenção, já que é na atuação brilhante de Mescal que os pontos mais complexos do longa se agarram. Callum é um homem jovem que tem uma filha de onze anos, não tem muito dinheiro. Não é possível saber muito mais do que isso sobre o seu personagem, ao menos na superfície, e por isso, as nuances delicadas de seu personagem se derramam em olhares cansados, ações sem energia, frases dóceis para esconder a tristeza do tom de voz. Triste, talvez depressivo, o pai da garotinha é um retrato de todos os pais do mundo, que carrega para si as dores e anseios, sofrendo calado com a intenção de proteger a filha de seus pensamentos e do caos.

Sophie, por sua vez, idolatra o pai de um modo sucinto. Ela busca fingir não se importar com muitas das transformações a sua volta, mas junto ao novo mundo de amadurecimento e transmutações que a perseguem, sua alma curiosa se volta para o interior e exterior ao mesmo tempo, em uma busca por si mesma. É naquele hotel de veraneio que a garota descobre mais sobre suas angústias, ao mesmo tempo em que parece sentir as dores do pai e se esforça gentilmente para curar as feridas.

Com um trabalho impecável de fotografia, que mescla planos e utiliza gravações que remetem diretamente aos anos 90, o filme já abre com uma cena forte, que reaparece mais tarde, no decorrer da história. Sophie, com uma gravadora em mãos, pergunta ao pai: ‘Quando você tinha onze anos, o que achava que estaria fazendo agora?’. A resposta não vem, mas o silêncio de Callum é revelador e premedita todo o longa-metragem.

O amor entre os personagens prevalece como grande fio condutor e prova como o cinema tem o poder de criar histórias tocantes e comoventes sem se apoiar nos mesmos arquétipos. O grande poder de Aftersun é a potência sensível presente na convivência.

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