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Ilustração: Biu da Silva.

Conto: Geleia de mocotó

Ao romper com Cirano, jurou a si mesmo que daquela vez não ia ficar padecendo como um idiota.Até resolver comer a geleia que estava na geladeira.

Quando Marcos começou a chorar ao comer geleia de mocotó sabor tutti-frutti teve certeza de que alguma coisa não estava indo bem com ele. Sempre que acabava uma relação sofria por meses seguidos. Fotos arquivadas nos álbuns do Facebook e as mensagens trocadas pelo WhatsApp eram as principais provocadoras de dias inteiros prostrados na cama até conseguir voltar a ter uma vida aparentemente normal. Ao romper com Cirano, jurou a si mesmo que daquela vez não ia ficar padecendo como um idiota, saiu do Facebook, cancelou a conta do WhatsApp, do Instagram e, por duas semanas, segurou a barra. Até resolver comer a geleia que estava na geladeira. Marcos passara a comprar regularmente o produto ao descobrir que Cirano o adorava. Em muitas tardes passadas juntos, depois de fazerem amor, o copinho de geleia de mocotó geladinha era compartilhado e saboreado como se estivessem diante de um prato de ambrosia – o manjar dos deuses do Olimpo. Sozinho, porém, degustar aquela substância cor de caramelo, transparente e trêmula foi, para Marcos, jogar por terra o projeto “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”.

Beto encostou a bicicleta no meio fio, ajeitou a bermuda e o boné e olhou para a moça da banquinha de jogo de bicho ao lado da borracharia. Ela deu um sorriso e perguntou, apenas para confirmar, se ele ia jogar na milhar a qual, há meses, vinha apostando. Beto balançou a cabeça afirmativamente e sentou-se ao lado da banca. Deu o dinheiro para a moça e ficou esperando o comprovante sair da maquininha. Naquele dia jogara pela milésima vez 10 reais no 4823. Umas três semanas antes acertara a centena e ganhara alguns trocados. Mas isto não o levara a mudar de número. Continuaria insistindo. Alimentava a esperança que um dia tiraria um dinheirinho e poderia finalmente comprar a casinha onde morava por trás do estádio do Arruda. A moça lhe passou o comprovante da aposta e Beto permaneceu sentado, olhando em direção a um grupo de desocupados que bebia cachaça do outro lado da rua. Seus olhos verdes estavam inquietos, contrastando com o rosto bonito, mas de aparência cansada, marcado pelas rugas de expressão. O cabelo castanho de fios finos, entremeados por mechas brancas, também estava maltratado. Naquela noite, Beto sonhara com Arnaldo e, desde que acordara, não conseguia parar de pensar no seu amante morto há 10 anos por uma bala perdida.

Marcos não aguentou terminar de comer a geleia. Colocou na boca duas colheradas e largou o copo em cima do balcão da cozinha. Estava se sentindo patético depois de chorar por causa de um copo de geleia. Estava convencido que, das duas uma, ou tinha sérios distúrbios psicológicos ou alguém tinha feito uma urucubaca contra ele.  Só isso justificaria derramar lágrimas por uma pessoa como Cirano a qual, no ano e meio em que estiveram juntos, lhe trouxera mais problemas do que alegrias. Em cinco anos ele era o terceiro cafajeste por quem se enamorava. O padrão era o mesmo. Trepada maravilhosa, mas o caráter duvidoso. Comiam quem desse bola para eles, mentiam descaradamente, ficavam arrogantes e descontrolados quando bebiam e se drogavam e ainda se metiam em rolos. E a cada final de caso, lá estava ele roendo beira de calçada por homens que nada valiam. Uma cartomante já havia dito que ele carregava aquela perturbação em sua alma, herança de vidas passadas, e ele teria que se conformar, pois aquele era o seu destino.  Marcos, no entanto, não aguentava mais aquele eterno Complexo de Cabíria lhe acompanhando. Via-se mais uma vez como a personagem de Giulietta Massima, no filme Noites de Cabíria, uma prostituta sempre enganada pelos homens, mas que, a cada queda, volta a sorrir e a sonhar em encontrar um príncipe encantado. Aquele ciclo de envolvimentos tóxicos precisava chegar a um fim.

Beto passou em casa para pegar a caixa de ferramentas e seguir para o endereço que haviam lhe passado. O serviço era simples, reparar uma porta que havia sido arrombada num prédio não muito distante, nas imediações do Rosarinho. Tinha decidido tirar o sábado para não fazer nada, mas precisava de dinheiro para comprar um remédio para sua mãe. O sonho com Arnaldo ainda dominava seus pensamentos. Antes de voltar para a rua, foi até a cômoda do quarto e olhou para a única foto que tinha do rapaz. Uma foto que começava a ficar com um tom rosa e que tornava indefinidos os traços do rosto de Arnaldo, de braços cruzados, vestindo apenas uma bermuda, encostado numa grande árvore. Depois de Arnaldo ninguém mais conseguira romper o coração de Beto. Apenas encontros sexuais esparsos sem consequências. A morte violenta do seu companheiro o fez perder a graça pela existência. Desde então, os dias se sucediam rotineiros, ocupava-se de pequenos trabalhos de marcenaria, eletricidade, encanação realizados apenas para garantir a sobrevivência. Não gostava de televisão, de bares, sua única distração era a leitura de romances, hábito adquirido por influência do companheiro desaparecido. Ia regularmente na Praça do Sebo atrás de livros baratos. Acabava um, começava outro. E mergulhava de corpo e alma neles. Se identificava com os personagens, ficava feliz por e com eles, sofria, amava, chorava, criava desdobramentos pessoais, reconstruindo diferentes caminhos para a mesma trama, ficava íntimo do autor. E, ao terminar a leitura, ficava vários dias absorto nos efeitos que a história havia provocado. Com o passar dos anos aprimorou seu hábito. Das histórias rocambolescas de Sidney Sheldon passou a se aventurar a leituras que a princípio achava complicadas. Lia romances policiais, histórias de ficção científica, biografias e ficou feliz quando descobriu livros que contavam histórias de homens que se amavam. Dois dias antes de sonhar com Arnaldo tinha acabado de ler À Sombra da Casa Azul, um livro de um escritor do Recife que encontrou por acaso numa promoção do sebo.  Ficou interessado quando viu ser uma autobiografia em que o autor contava da sua paixão por um rapaz jovem que, ao se envolver com criminosos, acabou sendo assassinado. Embora Arnaldo não fosse um bandido, a sua morte trágica numa comunidade pobre causara nele a mesma dor narrada na história. 

O interfone tocou quando Marcos estava se preparando para tomar banho. Com a toalha enrolada na cintura atendeu e disse alô com um tom de voz aborrecido. Ouviu um bom dia lento emitido por uma voz que lhe soou cautelosa. “É o rapaz que veio consertar a porta”. Marcos lembrou que tinha pedido a sua vizinha a indicação de alguém que pudesse fazer um reparo na sua porta da área de serviço. Ela havia sido danificada, duas semanas antes, quando Cirano tentou arrombar o seu apartamento. Após a briga que provocou a separação, Marcos o expulsara e a troca das fechaduras desencadeou a ira do moço. Colocou então uma bermuda rapidamente e liberou a porta de entrada do prédio. Sempre que recebia homens para fazer serviços em seu apartamento, enquanto a pessoa não chegava, Marcos ficava imaginando como ela seria fisicamente. Se seria um homem jovem ou velho, bonito ou feio, um boy transado ou uma pessoa comum. Os dois minutos ouvindo os passos de alguém se aproximando o levaram a desejar, naquele dia, que o marceneiro fosse um boy com pinta de ator de filme pornô que o seduzisse e ali mesmo, na área de serviço, trepasse adoidado com ele e o fizesse esquecer Cirano. Marcos abriu a porta e ficou decepcionado. Era um homem comum, magro, com cerca de 40 anos, malvestido e descuidado. 

Quando a porta abriu, a luz vinda do terraço não permitiu que Beto visse com clareza o rapaz que o atendia. Percebeu apenas ser alguém um pouco mais jovem do que ele. Pediu licença e entrou. Agora podia ver o seu cliente de perto e com nitidez. Beto ficou lívido. Seu coração disparou. Não conseguiu dizer uma palavra. O moço começou a falar e a caminhar em direção a área de serviço, mas Beto nada ouvia. Apenas seguiu até o local indicado. Colocou sua caixa de ferramentas no chão e voltou a olhar para o rapaz. A forma do rosto, a altura, a cor da pele, nariz, boca, olhos, tudo lembrava Arnaldo, seu falecido companheiro. Para disfarçar sua perturbação, Beto pediu um copo d’água. O sonho e agora aquela visão eram demais para ele. Tentou se concentrar no que teria que fazer, mas olhava para a porta meio destroçada e não conseguia identificar o que teria a reparar. Enquanto bebia a água, em pequenos goles, seus olhos percorreram o tórax, a virilha, as pernas do rapaz e sentiu o sangue chegar até o seu pau. Ficou com receio de ter uma ereção, mas quanto mais buscava espantar aquela ideia da sua cabeça, mas sentia sua rola enrijecer. Deu as costas para o rapaz, voltou-se para a porta e perguntou o que tinha acontecido.

Marcos levou alguns segundos para responder. Notara o quanto o marceneiro tinha ficado atarantado quando o vira e ficou se perguntando o motivo. “Seria ele gay?”, pensou. Percebeu o olhar escrutinador do homem sobre seu corpo. Estava sem camisa, sem cueca e com uma bermuda fina branca que marcava as suas genitais. Passado o primeiro momento, ele também sentira algo que não sabia como definir muito bem. O homem, sem dúvida, fora um jovem bem mais atraente. Quando passou para ele o copo com água acompanhou atentamente o movimento de suas mãos e dos seus braços de músculos bem definidos, notou as veias grossas marcando seu pulso largo e os dedos longos nodosos. Elas lhe despertaram a libido. Pensou naquelas mãos de aparência rude em volta do seu pescoço. Além disso, o roçar do tecido sintético da bermuda em seu pau fez com que ele ganhasse volume. O marceneiro olhou para Marcos esperando a resposta. Marcos adivinhou uma grande tristeza, quase um pedido de socorro vindo em sua direção. “Foi uma pessoa que tentou entrar à força aqui e deu um chute tão violento que arrancou a fechadura e empenou a porta”, respondeu cismado. 

“Aconselho o senhor colocar uma outra porta completa. Mesmo que eu ajeite a fechadura e coloque um reforço na lateral, ela não vai ficar muito segura”, adiantou Beto, um pouco mais calmo encarando o rapaz de frente. Queria saber mais sobre aquele rapaz, quantos anos tinha, o que fazia na vida… mas calou-se. Lembrou-se de Arnaldo, do seu jeito tímido e quieto… mas, ao mesmo tempo, impulsivo e viril ao fazer amor. A excitação inicial acabou indo embora. O pau de Beto ficou flácido outra vez. Se recompôs. Olhou mais uma vez para a porta. Avaliou qual reparo emergencial podia ser feito e voltou-se para o rapaz. “Me desculpe moço, mas como é mesmo o seu nome?” “Marcos. E o seu?” “Roberto. Mas todos me chamam de Beto. Olhe, vou dar um jeito aqui e depois o senhor decide o que fazer”. 

Beto abriu a caixa de ferramentas e começou a realizar o reparo. O trabalho ia durar cerca de 20 minutos. Marcos puxou um banco, sentou-se ao lado da mesa e ficou vendo o serviço ser feito. Voltou a pensar em Cirano. Como ficava excitado quando o encontrava e também como, nos meses em que ficaram juntos, se masturbava quase  todos os dias pensando nele. Enquanto divagava por essas fantasias posou de novo o olhar nos braços do marceneiro. A inquietação voltou. Beto, por sua vez, sentiu que Marcos estava olhando para ele. Enquanto realizava o conserto, pensava em Arnaldo. Reviveu num flash rápido o seu corpo colado ao dele, peito com peito, os paus sendo friccionados com volúpia. A aflição por sentir desejo por um corpo que não existia há tanto tempo invadiu seu sangue. Queria correr daquele apartamento. Foi quando sentiu a mão de Marcos alisando seu braço. Fechou os olhos e inclinou a cabeça levemente para trás. Uma lassidão o invadiu e seus pelos ficaram eriçados. Virou-se então bruscamente e agarrou o pescoço do rapaz com sua mão direita. Marcos sentiu a mão áspera contornar sua nuca e agarrou o braço de Beto pelo bíceps com força. Aproximaram seus corpos, encostaram as coxas e sentiram seus paus rígidos se moverem sob o tecido da bermuda. Encostados no balcão se agarraram ainda com mais virulência. Beto bateu no copo de geleia que tombou derramando todo o seu conteúdo e melando sua mão esquerda. Encostou então os dedos lambuzados de geleia nos lábios de Marcos. O rapaz lambeu os dedos com voracidade e os enfiou em sua boca. Continuaram abraçados enquanto movimentavam suas pélvis uma contra a outra. O gozo veio rápido. Simultâneo. Ainda ofegantes afastaram seus corpos. Marcos sentou-se devagar no banco e Beto retornou para a porta sem se virar, mirando os olhos do rapaz como um lobo que acaba de saciar a fome. Concluiu o trabalho em silêncio. 

O clima de quietude tensa só foi quebrado quando Beto fez sinal que o serviço estava concluído. “Quanto lhe devo?”, indagou Marcos com timidez.  “Cinquenta reais.” Marcos foi até o quarto pegou a nota, voltou para a cozinha e a entregou. Beto fechou sua caixa de ferramentas, testou a fechadura mais uma vez e agradeceu. “Muito obrigado”. “Obrigado digo eu. Agora estou me sentido mais seguro. Vou fazer o que você disse. Vou comprar uma porta nova”.  “Qualquer coisa é só avisar. Eu não tenho celular. Mas pode mandar recado por dona Jéssica”. “Pode deixar. Aviso sim”. “Até logo”. “Até”. Antes de voltar ao banho que interrompera, Marcos ficou sentado na cozinha lambendo os lábios sujos de geleia de mocotó e pensando em Cirano. Beto desceu as escadas do prédio, montou na sua bicicleta e notou que o edifício era pintado de azul. Lembrou a cena do romance em que o escritor se debruça sobre o corpo ensanguentado do seu amante.  Percebeu a mancha úmida em sua bermuda e partiu. Ao chegar em casa foi direto para o seu quarto, tomou a foto de Arnaldo em suas mãos e a beijou. Ao lado da foto, estava o próximo romance que iria ler. Fora um presente do companheiro, poucos dias antes de sua morte. Por isso permanecera intocado. Agora sentiu que era chegado o momento de conhecer O retrato de Dorian Gray.

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