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Beyoncé enaltece raízes negras no country em “Cowboy Carter”, um disco de fúria

Menos celebratório e mais incisivo que o álbum anterior, o Ato 2 chega como uma reivindicação de espaços, demolição de gêneros e uma busca por mudança de perspectivas na indústria

Beyoncé enaltece raízes negras no country em “Cowboy Carter”, um disco de fúria
4.5

Beyoncé
Cowboy Carter
Parkwood Entertainment/Sony, 2024. Gênero: Pop/Country/R&B


Poucos artistas no mundo hoje conseguem transformar um lançamento de disco em um evento cultural. Beyoncé é uma das poucas pessoas hoje a ter essa estatura e vem usando toda sua relevância para revolver as entranhas da indústria do showbiz. Cowboy Carter, o segundo ato de uma trilogia iniciada com Renaissance em 2022, chega com a proposta de revirar o imaginário country das raízes musicais norte-americanas para encontrar os fios soltos do papel do povo negro nesse legado. Uma contribuição que a América branca fez questão de apagar.

Beyoncé chega nessa seara country com a força de um tsunami, difícil de passar despercebida ou ignorada. Já começou quebrando o recorde de ser a primeira artista negra a chegar ao topo da parada do gênero na Billboard, o que explica muita coisa. Em seguida, em um comunicado nas redes, falou que o disco nasceu de um ressentimento de não se sentir acolhida em um evento do gênero. E disse “este não é um disco de country. É um disco de Beyoncé”. As pistas foram dadas.

Cowboy Carter não é um disco celebratório, como o que ela fez com a house music e a disco em Renaissance. É um disco de reivindicação de espaços, de retomada de um lugar muito associado à cultura estadunidense e que invisibilizou contribuições de artistas negros por décadas. O pioneirismo de ser a primeira #1 na parada country fala sobre isso: não há mais como ignorar.

Nesse ponto de vista, Cowboy Carter, assim como a trilogia como um todo, parece ser o maior testamento político de Beyoncé como uma artista muito ciente de sua relevância. Mas a escolha de fazer essa crítica a partir de sua própria indústria chega a ser ainda mais corajoso. E ela vem fazendo isso há algum tempo, desde que abandonou a corrida desleal que as divas pop travam pela atenção de um mercado ávido por números e imediatismos.

Essa transição acontece a partir do seu disco homônimo de 2013, mas se intensifica no Lemonade, até hoje um dos álbuns visuais mais relevantes deste início do século. Desde então, todos os seus trabalhos e projetos se tornaram conceituais e pensados para reverberar questionamentos sobre o modus operandi da indústria cuja cartilha ela seguiu à risca até ali. Abandonou a obsessão dos charts e singles lançados como profusão e fez tudo de forma independente. Até sua apresentação no Coachella, em 2018, adquiriu um status maior que o próprio festival (e acabou se tornando um documentário e um disco ao vivo no ano seguinte).

As questões sociais que segue trabalhando em seus discos desde Beyoncé (2016) e, sobretudo no projeto The Carters, parceria com o marido Jay-Z (2018), seguem fazendo parte de seus mais recentes trabalhos, mas o seu foco passou a ser o revisionismo da música em si, com um impressionante trabalho de pesquisa histórica que tem como proposta trazer novos pontos de vista, até então excessivamente brancos. Só quem nunca esteve do lado mais fraco da disputa de narrativas subestima o quanto isso é poderoso. Nessa régua pela qual tudo passa a ser medido, Beyoncé eleva o padrão do gênero que revisita e torna impossível ignorar o seu impacto. É um trabalho de desconstrução (ou mesmo demolição) que é repleto de ironia, mas também certa fúria. Ao contrário do tom de festa do Renaissance, Cowboy Carter traz uma energia mais pesada, até um pouco sombria.

Beyoncé.
Beyoncé transformou seus lançamentos em eventos culturais que colocam a indústria em xeque com suas próprias práticas. (Divulgação).

No conceito pensado por Beyoncé para este novo disco estamos ouvindo uma estação de rádio AM do Texas em um carro antigo passeando pelo interior. A emissora é comandada por Willie Nelson, lenda do country que segue na ativa aos 90 anos. O disco é recheado de diversas referências e inúmeros interlúdios e trechos de faixas, como uma típica audição despretensiosa de rádio, com nomes que vão de Nancy Sinatra a Beach Boys, passando por Chuck Berry, Patsy Cline, Mickey e Sylvia, Hank Cochran, entre outros.

Beyoncé ainda reconhece o pioneirismo de Linda Martell, a primeira artista negra a ter sucesso no country e que ajudou a pavimentar o caminho para inúmeros artistas de Nashville. Enaltecer a excelência negra é uma das chaves para entender a era Renaissance e é bem bonito ver Martell aparecer aqui.

Dolly Parton é outra presença de peso no disco. Uma das cantoras mais famosas do country e ainda hoje muito associada ao gênero, faz uma participação na “rádio texana” de Beyoncé apresentando a regravação de “Jolene”, uma das músicas mais regravadas da história e que aqui ganha uma versão que conversa muito com o R&B e com uma interpretação mais incisiva em relação à original, mais pacata. Dolly também dá às caras em “Tyrant”, em que o rock conversa com sintetizadores numa vibe mais dançante, além da faixa que leva seu nome.

Musicalmente, Cowboy Carter faz um trabalho impressionante de produção, com uma desconstrução de gêneros, trazendo à tona algo totalmente novo sem deixar de referenciar as raízes rurais do cancioneiro americano, como o folk e o country. O hit “Texas Hold’em” e “16 Carriages” já davam o tom, mas o álbum é repleto de bons momentos na mesma toada, como “Ill Most Wanted”, com Miley Cyrus, “Riiverdance”, “Ameriican Requiem” e “Spaghettii”. Esta última, inclusive, traz Linda Martell fazendo uma provocação sobre o conceito de “gênero musical”. “Gênero? Gêneros são um conceito interessante, não? Em teoria, eles tem uma definição simples que é fácil de entender. Mas, na prática, bem, alguns podem se sentir confinados”, diz a letra.

Em “Ya Ya”, a mais sarcástica do disco, Beyoncé faz uma típica música de rodeio, com direitos a palmas e estalos de dedos, para jogar na cara da América racista que ser “americano” não pode ser mais sinônimo de ser branco. “Minha família viveu e morreu na América. Tem muito vermelho nesse branco e azul. A História não pode ser apagada”, canta Beyoncé.

Em um disco tão extenso (27 faixas e mais de 1h de audição), nem todas as músicas conseguem atender ao mesmo nível que o conceito pede. Fica a dúvida do que “Leviis Jeans”, com Post Malone faz aqui. Além da participação de Malone ficar totalmente ofuscada pela imponência de Beyoncé, sua interpretação tenta acompanhar o mesmo tom e estilo de Bey (sem conseguir). Ou seja, meio desnecessário. Já “Bodyguard” é super genérica e até faria bonito em um outro disco pop mais pedestre, mas não em algo tão bem construído como esse.

Cowboy Carter também exala o melhor da “experiência Beyoncé”, sobretudo nas interpretações cheias de personalidade, que fazem uso das variações de timbres de Bey para alcançar diferentes emoções de acordo com a proposta. As baladas do disco estão entre as melhores já feitas pela cantora, com destaque para “Alliigator Tears”, com seu arranjo acústico e “Protector”, um folk delicado com a participação da filha Rumi Carter. “Daughter” mostra B alcançando as altas notas que a colmeia tanto ama e que traz ainda uma ária italiana do século 18, “Caro Mio Ben”. Sublime.

Uma das personalidades midiáticas mais elípticas de nosso tempo, Beyoncé muito raramente se abre quanto às suas reais intenções artísticas, fazendo de seu trabalho a única maneira de conhecermos o que pensa, suas propostas. Fãs, jornalistas e a indústria como um todo vão catando as pistas e chaves em lançamentos como esse. Mas a era Renaissance deixa bem evidente alguns pontos, como o papel do povo negro para a construção da América, da contribuição de sua arte e tradições para o imaginário americano e sobre a necessidade de novas perspectivas para pensarmos a cultura. Cowboy Carter só aumenta ainda mais a expectativa para o encerramento da trilogia.

Ouça Beyoncé – Cowboy Carter

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