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Foto: Divulgação

“Aurora: Memórias e Delírios de uma Mulher da Vida”: a arte complexa de uma mulher completa

Livro de Silvana Jeha e Joel Birman discute a vida e obra de Aurora Cursino, artista que viveu e produziu arte dentro de um hospital psiquiátrico

Aurora é um mistério do princípio ao fim. Não é, porém, um daqueles mistérios solucionáveis dos filmes de suspense, que depois de muita tensão, revela um final sem pontas soltas e feliz para os protagonistas. A obra dos pesquisadores Silvana Jeha e Joel Birman, Aurora: Memórias e Delírios de uma Mulher da Vida prova que sua trajetória foi exatamente o contrário disso. 

Aurora Cursino é um daqueles mistérios que não se torna mais fácil de desvendar com o passar do tempo, um daqueles em que o final se assemelha muito ao começo e deixa o espectador, por vezes, raivoso de não ter tempo, pistas ou meios suficientes de chegar a lugar nenhum. Um em que as sombras não se libertam, em que a luz continua escondida. A história dessa mulher provavelmente poderia ser descrita assim, mas um fator determinante mudou tudo: Aurora fez arte.

Não se sabe muito sobre a sua vida, apenas que nasceu no ano de 1896, em Franco da Rosa (SP), que cultivava um amor pela música, escrita e leitura, provavelmente cresceu com grande influência paterna e realizava tarefas domésticas. Sabe-se também, que quando mais velha Aurora se casou brevemente com um homem de quem não gostava e talvez por isso, sua vida mudou: fugiu do lar, trabalhou como doméstica e prostituta tanto no Brasil quanto em algum outro lugar da Europa. 

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As obras de Aurora Cursino trabalham diversos temas, como a submissão e o abandono. (Divulgação).

Aurora Cursino foi internada no Hospital Psiquiátrico de Perdizes, depois, aos 48 anos de idade, em 1944, foi internada no Hospital do Juquery. Passou 15 anos por lá, criando uma arte descompassada, revolucionária e ardente, foi lobotomizada em 1955 e morreu em 1959, quase que inteiramente esquecida pela sociedade da qual fazia parte, se não fosse pelas obras que deixou.

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Na obra Aurora: Memórias e Delírios de uma Mulher da Vida, os autores convidam os seus leitores a adentrar no mistério de Aurora, essa mulher que foi ignorada, mas que possuía muito a dizer e através da análise de suas obras, remontar pouco a pouco, o poder da arte manicomial como uma arte como qualquer outra, que grita, pulsa e se faz especial por si só. 

Dessa forma, o leitor se depara com algo que vai além da história de uma artista — porque sim, Aurora foi uma artista — e perpassa pela violência que é ser mulher no mundo, pelas dores sentidas no meio do furacão, pela realidade social em que ela provavelmente esteve inserida um dia, pela religiosidade (ou falta dela), pela depravação dos homens que tantas vezes abusaram de si, pela prostituição, pela maternidade e pela vida no Juquery. 

A vida de Aurora Cursino revela a ignorância do mundo em relação ao diferente, o grande medo em calar e ouvir, porque através de suas palavras fortes e pretas contra as telas coloridas e diversas, Aurora gritava ao mundo as suas vivências. 

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Obra denuncia a violência dos manicômios, um depósito de gente indesejada. (Divulgação).

Com a organização impecável e facilidade em explicar cada um dos pontos trazidos sobre a vida e arte de Aurora Cursino, o livro consegue realizar o que se propõe a fazer e realmente homenageia a artista ao mesmo tempo em que denuncia com contundência a violência e o descaso. 

Através da leitura da obra, fica claro que ser mulher na sociedade ainda não mudou tanto assim, que escolher ser puta significa abrir mão de todos os outros adjetivos existentes no mundo e pouco a pouco deixar de ser. Aurora foi puta sim, mas também foi filha, criança, mãe, esposa, sonhadora, combatente, revolucionária, pintora e artista. A obra deixa isso claro e surge como um assobio entre o silêncio, anunciando a narrativa de uma história que merece ser contada, mas que frequentemente é silenciada. 

Uma Mulher da Vida. Foi isso que a artista foi. Arte. Foi isso que Aurora fez. E mesmo nas obras que confundem o delírio com a realidade, podemos ver a verdade sendo contada. As dores da experiência de ser mulher, de casar obrigada, de ser vista como um pedaço de carne, de parir, de ser mãe e de deixar de ser. 

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Os autores reafirmam durante toda a sua obra o papel dos manicômios na sociedade: o de ser depósito de gente indesejada. Aurora era assim mesmo, indesejada. Mas encontrou a Escola de Artes Plásticas dentro do Juquery, e colocou para fora tudo aquilo que a tornava tão mal vista, tão sem valor pelos outros. 

Assim como Nise da Silveira, médica psiquiatra que revolucionou o tratamento dentro dos hospitais psiquiátricos no Brasil através da influência da arte nos seus pacientes, entender as pessoas como pessoas é essencial. Aurora não era menos nada por estar dentro do Juquery, era uma pessoa completa como qualquer outra, que se utilizava das tintas para contar sua versão das coisas. 

“A arte é seu campo de discurso porque a arte é também o campo da transgressão e da liberdade”, traz o livro em um dos seus primeiros capítulos para descrever a arte de Aurora. Em sua cabeça, ela era inteiramente livre, livre para lembrar e também para desilusionar, para pintar. 

Agora, enquanto sociedade, estamos livres para observar a arte de Aurora, conhecer mais de sua jornada e peculiaridades através das palavras de Silvana Jeha e Joel Birman, mas também de ir além.