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Ciça atuou em diferentes veículos da imprensa, mas ficou famosa pelo seu personagem O Pato, lançado durante a ditadura militar; a personagem Bia Sabiá foi criada para publicações feministas como Mulherio e Nós Mulheres. (Cortesia da artista).

Ciça: humor pela liberdade

Cecília Alves Pinto driblou a censura da ditadura, o machismo no meio editorial e foi pioneira no humor gráfico com personagens como O Pato e Bia Sabiá

Este texto foi publicado originalmente na edição impressa da revista Plaf. Acesse a página especial da revista e compre as edições anteriores.

Ciça, nome artístico de Cecília Alves Pinto, é considerada uma das grandes pioneiras dos quadrinhos nos jornais brasileiros. Nascida em São Paulo, atuou como jornalista até começar a publicar suas tiras no Jornal dos Sports, em 1967. O feito era pouco comum: na época, não havia mulheres publicando cartuns em veículos de imprensa no Brasil. Começou a investir no humor gráfico por puro prazer. “Sempre soube que, pelo menos aqui no Brasil, essa carreira é muito pouco compensadora para se ganhar a vida”. 

Entre as suas influências, Ciça menciona “autores diversos, mestres dos quadrinhos, jornalistas do Pasquim, revistas de humor europeias e mesmo americanas”. Porém, é o cotidiano que costuma inspirá-la: “para criar, na época, eu lia os jornais de cabo a rabo, do título ao ponto final. Toda a inspiração vem do que acontece”. E é de um momento particularmente turbulento no país que surge O Pato, série que projetou Ciça nacionalmente e a transformou em um dos maiores nomes da mídia gráfica no Brasil. 

Nos anos mais duros da ditadura, ‘falar’ através de pequenos animais me defendeu das autoridades, já que eles não se dispunham a se reconhecerem como formigas”

Ciça

Publicada durante a ditadura militar, a série utilizava personagens sempre em forma de animais para analisar criticamente a situação política e social do país. A linguagem empregada pela cartunista fazia com que seu trabalho corresse menos risco de sofrer censura. “Nos anos mais duros, acredito que o fato de ‘falar’ através de pequenos animais me defendeu das autoridades, que talvez não se dispusessem a se reconhecer como formigas, por exemplo”, reflete. E embora revele ter se envolvido com política institucional, ela afirma que nunca chegou a ter problemas com as autoridades: “meu nome constou em listas de nomes ‘censuráveis’ ou ‘de interesse’, mas ficou nisso”.

Ao analisar o período, Ciça diz que o momento que o Brasil passava lhe amadureceu enquanto artista. “Me fez evoluir de comentários comportamentais e humor simples para as críticas à situação política que transformou o país durante os vinte anos de autoritarismo”, diz. “Uma ditadura é sempre uma tragédia, mas tem muito de ridículo. E o humor é uma das armas com que se pode lutar pela liberdade, assim como todas as outras formas de arte”. Driblando a censura, as tiras de O Pato foram publicadas na Folha de S. Paulo entre os anos 1970 e 1980 e, posteriormente, reunidas em duas coletâneas: a primeira em 1986 e outra lançada em 2006 com o título de Pagando o Pato (L&PM Editora).

 “(…) os tempos difíceis estimulam a criatividade, aumentam a capacidade de indignação”.

Ciça

Além da Folha de S. Paulo, Ciça colaborou com diversos veículos de imprensa, como o aclamado O Pasquim, fundado por seu marido, o artista plástico Zélio Alves Pinto. A autora conta jamais ter sofrido preconceito em relação ao seu trabalho, mas admite que era vista “quase [como] uma curiosidade” pela redação majoritariamente masculina do semanário.

Também pondera sobre as acusações de que a publicação, uma das mais importantes da imprensa brasileira no período, era machista. “O Pasquim tinha um olhar machista, sim, mas era mais um certo olhar de superioridade, mais de condescendência do que de hostilidade. Não era uma atitude de ataque, mas de um desrespeito leviano”. 

Alinhada ao movimento de mulheres nos anos 1970, a cartunista criou a Bia Sabiá, personagem concebida especialmente para jornais feministas como Mulherio, Brasil Mulher e Nós Mulheres. Nas tirinhas, Ciça problematizava o machismo presente nas relações entre homens e mulheres, criticando a invisibilidade do trabalho doméstico. De lá pra cá, ela acredita ter havido “muitos avanços, principalmente na percepção dessa invisibilidade. E do longo caminho que ainda resta percorrer”.

Premiada com o 21o Troféu HQ Mix na categoria “Grande Mestre”, em 2009, e primeira cartunista a receber espaço no Museu da Imagem e Som em São Paulo, Ciça deixou de produzir quadrinhos para se dedicar aos livros infantis. Aos 80 anos, a autora lamenta que o Brasil esteja repetindo os mesmos erros do passado, mas mantém a esperança: “os tempos difíceis estimulam a criatividade, aumentam a capacidade de indignação e, em todas as áreas de criação, as vozes dos artistas costumam se levantar contra a opressão. Que isso também se repita, que essas vozes sejam presentes”.

Ciça foi homenageada na CCXP 2022 e ilustrou as credenciais do Artist’s Valley, o espaço dedicado aos artistas do evento.

Ciça
Foto: Cortesia da artista.