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Fantasmas, de Raina Telgemeier: relação entre irmãs embalam trama sobre tradição e morte

Nova HQ da autora best-seller aborda com delicadeza a convivência com a fibrose cística, mas é rasa na sua leitura da cultura mexicana tradicional

Fantasmas, de Raina Telgemeier: relação entre irmãs embalam trama sobre tradição e morte
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É a Maurício de Sousa norte-americana. Poderia explicar assim, o sucesso que a autora Raina Telgemeier faz nos Estados Unidos. E não estou falando só entre os quadrinistas, mas de todo o mercado literário norte-americano. Por exemplo, no lançamento de Coragem (2019), Raina tinha 18 milhões de exemplares em circulação. Seus quadrinhos, portanto, furam a bolha da nona arte.

Claro que Telgemeier não estampa suas personagens em frutas, fraldas ou lápis de cor. Assim como Maurício (ainda) não produz quadrinhos no formato livro de mais de 200 páginas. Mas o que une os dois é que: em geral, suas histórias são tramas simples, temas próximos aos leitores e com narrativas bem diretas, pouco complexas. 

E em Fantasmas (2022), quarta HQ da autora que foi publicada pela Editora Intrínseca, não é diferente. Acompanhamos a história de Catrina e Maya, duas irmãs que acabam de se mudar para uma cidade no litoral da Califórnia com forte presença da cultura mexicana. 

Lá, elas descobrem que a cidade e os novos amigos têm uma relação com os antepassados mortos. Na Bahia de La Luna, os fantasmas se relacionam com os moradores e, se você se acostumar, podem ser tão amigos quanto os vivos. Resumindo: todos são simpáticos, agradáveis e alegres como o Gasparzinho, o fantasminha camarada da Sessão da Tarde.

Toda a trama fantasmagórica, na verdade é coadjuvante da força motriz da história: a relação complexa entre as irmãs. Maya, a mais nova, demanda maior atenção dos pais já que sofre de fibrose cística, uma doença que requer intensos cuidados e uma atenção constante. Já Catrina, a mais velha, esconde um ressentimento com essa situação, apesar de também manter uma relação de proteção com a caçula. 

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Telgemeier é uma das poucas autoras a furar a bolha das HQs. (Divulgação).

A fibrose cística é uma doença rara, mas afeta em torno de 30 mil pessoas nos EUA e 5 mil no Brasil. Esse número é multiplicado se levarmos em conta os familiares envolvidos em cada caso, então é louvável e muito pertinente a autora abordar a doença em sua história. Claro que tudo é feito com muita sensibilidade e seriedade na narrativa, ainda que não seja o principal enfoque da trama.

O que mais chamou a atenção de parte do público e de especialistas foi o modo como Telgemeier lidou com a cultura mexicana e o Día de los Muertos. Há alguns problemas e equívocos na abordagem a tradição cultural do México, como a descrição da data como “Halloween mexicano” e as referências descontextualizadas às missões colonizadoras dos espanhóis. 

Colonização esta à custa de violência e assassinato dos povos originários indígenas nos séculos 18 e 19. No quadrinho, os indígenas são fantasmas alegres que falam sempre de forma efusiva o espanhol de seus algozes opressores. A grande questão foi o fato de uma autora branca tratar de temas e costumes de uma cultura milenar sem uma pesquisa mais apurada, atenção ou o menor cuidado.

O que aconteceu com Fantasmas, foi o mesmo problema de Viva – A Vida é Uma Festa, filme da Disney/Pixar, que também aborda do Día de Los Muertos em sua trama principal, e recebeu críticas parecidas na época de seu lançamento.

Apesar disso, ainda que as críticas manchem uma trajetória ilibada até aqui, elas não foram unânimes. A autora, inclusive, venceu mais um Prêmio Eisner pela HQ, o quinto de sua carreira. E seu número de leitores só cresce, o que se mostra por suas tiragens altíssimas citadas no início deste texto.

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Autora compreendeu abordagem problemática da cultura mexicana. (Divulgação).

É preciso, claro, ler Fantasmas com um olhar mais crítico do que a autora teve e um pouco mais de discernimento para driblar a problemática de sua trama de verniz colonizador. Mas isso não diminui suas qualidades, e que fizeram de Telgemeier uma autora tão aclamada, como a narrativa dinâmica e a boa construção das personagens. 

É importante registrar também que, por meio de uma nota em seu site, a autora reconheceu o erro apontado pelas críticas, explicando que havia pesquisado o tema antes de fazer a HQ, mas compreende que “para alguns leitores”, deixou a desejar em alguns aspectos.

Se Maurício de Sousa, com o passar dos anos, foi entendendo a importância da diversidade em suas personagens e passou a criar figuras como a garota negra Milena ou o garoto autista André, além de estar se preparando para lançar um personagem LGBTQIA+ na turminha do Limoeiro, Fantasmas pode ter dado uma amostra à Raina Telgemeire sobre o cuidado ao abordar outras culturas.

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