da próxima vez, o fogo
James Baldwin
Companhia das Letras, 136 páginas. 2024. R$ 69,90
Tradução de Nina Rizzi
Compreender os mecanismos do racismo contra as pessoas negras pode parecer algo simples e óbvio. Mas, não é, principalmente quando buscamos vislumbrar saídas para que ele seja erradicado e, sobretudo, evitar os fatos violentos os quais estamos habituados a testemunhar. Do racismo que explode em pura barbárie ao racismo estrutural entranhado no cotidiano, eis um mal que, nem mesmo com todos os avanços no campo dos direitos humanos, ainda conseguimos extirpar.
A luta antirracista é, portanto, uma ação básica do processo civilizatório que requer atitude e vigilância permanente. Nesse sentido, a obra da próxima vez, o fogo, de James Baldwin, é uma contribuição imensurável para nos ajudar a refletir sobre os enfrentamentos que a questão racial impõe, sejamos leitores negros, ou não, dispostos a mudar o rumo das coisas.
Talvez o fato de Baldwin ser um homem negro nascido no Harlem, em Nova York, nos Estados Unidos, e tratar do racismo em seu país, possa, num primeiro momento, nos levar a pensar que nem tudo que ocorre na América do Norte possa ser aplicado em países como o Brasil. Apesar de a origem e as bases do pensamento racista terem pontos em comum seja onde for, sabemos que cada contexto histórico, econômico e cultural, moldam diferentes formas de convívio e relações sociais, assim como a maneira pela qual a questão racial é vivenciada e pensada.
O livro de Baldwin, no entanto, mesmo calcado na sua experiência pessoal e no contexto sociocultural dos Estados Unidos dos anos 1950 e 1960, nos oferece uma gama de indagações e reflexões cujo maior mérito é nos levar, a exemplo de outros pensadores da questão racial como Frantz Fanon, a um outro patamar ideológico. Com habilidade e inteligência, Baldwin nos mostra a necessidade de não nos limitarmos ao senso comum que rege o tema e encarar o racismo por ângulos em que o maniqueísmo e a simplificação das análises cedam lugar a um ativismo que questiona e diversifica os pontos de vista.
A obra de Baldwin é um marco no debate sobre os direitos civis nos Estados Unidos. O livro traz dois relatos publicados inicialmente em revistas e reunidos em 1963. O primeiro é uma carta que o autor escreveu ao seu sobrinho adolescente sobre o que representava o centenário do fim da escravidão no país e como a raça se tornou um critério para definir as trajetórias individuais e coletivas dos estadunidenses. Para Baldwin estava claro que as instituições estadunidenses pouco fizeram para garantir o tratamento justo e igual dos negros.
Na carta, ele mostra como os brancos inferiorizaram os negros, desumanizando-os, concluindo que a segregação racial estava baseada no medo. Ele aconselha o jovem a ter um olhar crítico sobre como os Estados Unidos foi construído e recomenda que ele se aproprie da raiva contra o homem branco com uma postura ativa, ou seja, para que uma verdadeira integração racial ocorra, deve-se obrigar os brancos a se verem como eles realmente são e a deixarem de fugir da realidade caso eles realmente desejem mudá-la.
O segundo texto intitulado “Carta de uma região de minha mente” é um misto de memória e análise ensaística percorrendo diversos momentos da vida do escritor. Nascido em 1924, em uma família pobre em Nova York, no bairro negro do Harlem, Baldwin, quando jovem, teve uma vida religiosa ativa em uma igreja pentecostal, mas dela foi se afastando na medida em que foi sentindo como a religião cerceava o seu pensamento.
Em 1948 Baldwin foi morar em Paris, onde viveu alguns anos e iniciou sua carreira de escritor, publicando seus primeiros romances, dentre os quais O Quarto de Giovanni sobre a crise existencial de um exilado que se apaixona por um garçom italiano. Voltou aos Estados Unidos em 1957 e se engajou na crescente luta pelos direitos civis, se aproximando de líderes dos movimentos das comunidade afro-americana na qual, de um lado tinha o pastor Martin Luther King e, do outro, os muçulmanos negros ligados a Malcolm X.
Essas diferentes formas de ativismo em que a desobediência civil pacífica pregada por Luther King entrava em conflito com a militância radical da Nação do Islã foram, inclusive, descritas e analisadas por Baldwin, que não via nelas a melhor maneira de conduzir a questão. Para ele a construção de uma identidade negra que zelasse por sua dignidade e honra, não podia levar os negros a fazer com os outros o mesmo que havia sido feito com eles.
Baldwin, como observa Ronaldo Vitor da Silva no posfácio do livro, seguia o movimento de renovação estética, surgido na década de 1920, que buscava quebrar os estereótipos negativos das pessoas negras, levando a representação do negro para uma posição de dignidade e autodeterminação. Para esses intelectuais a literatura era algo fundamental para essa transformação e os textos mesclavam valores culturais e históricos com relatos pessoais. “Ao falar sobre si mesma, a pessoa negra deixaria de ser objeto de análise alheia para se tornar sujeito da própria história”.
No entanto, mesmo lutando pelo fim da segregação racial, o fato de ser gay e seus escritos terem um olhar crítico e apurado, Baldwin enfrentava dificuldades de conexão com as comunidades afro-americanas, a exemplo do movimento dos Panteras Negras. Um dos líderes grupo, Eldridge Cleaver, chegou a escrever em 1965 um texto onde faz um ataque violento e homofóbico contra o autor de Notas de um Filho Nativo, Terra Estranha e Se a Rua Beale Falasse, obras que expressam o humanismo franco de uma das mentes mais lúcidas e conscientes do século XX.
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