Festival trouxe nessa três mostras competitivas, além da Sessão VerOuvindo, de curtas pernambucanos acessíveis
Colaboração para O Grito!, de Taquaritinga do Norte (PE)
Era a primeira vez que Vitória Felipe saía do estado de São Paulo, tomando rumo ao interior de Pernambuco. A jovem negra da Baixada Paulista havia chegado em Recife na quarta pela manhã e, esperando no aeroporto, seguiria logo mais em direção ao agreste pernambucano, especificamente para Taquaritinga do Norte, a cerca de três horas dali.
Estudante de História, ela representaria o Instituto Querôs, da cidade de Santos, em cujas oficinas onde nasceu o curta Ana, de 2017, filme que problematiza questões sobre negritude, autorepresentação e as diversas formas de racismo. A primeira saída fora do estado – e logo para cerca de dois mil quilômetros de distância – ocorria justamente nesse contexto: era o cinema e a produção audiovisual que a levariam para o Curta Taquary, dando oportunidade para o contato e as trocas com realizadores e produtores de todo o Brasil. Embora Vitória tenha chegado na quarta-feira, um dia após a exibição de Ana, na Mostra Dália da Terra, a animação da jovem paulista parecia contagiante em poder representar não apenas a si, mas uma equipe que contava com mais de 40 outros jovens, em sua maioria, negros, que ajudaram a construir o filme.
Vitória é mais uma das jovens parte de uma onda que vem crescendo de realizadores e produtores negros no cinema brasileiro que reivindicam representatividade não apenas na quantidade de atores negros na tela, mas sua participação desde o pensamento e a produção dos filmes – escolha de elenco, produtores, diretores, fotógrafos –, investigando e inventando outras formas mesmo de fazer cinema.
“O ‘Ana’ teve campanha de crowdfunding junto com a APAN (Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro) que veio fortalecer o projeto e ajudar a pensar em não ter apenas pessoas negras na tela mas pela perspectiva negra, o que é fazer cinema negro, que é pensar desde a concepção dessa história, a construção desse personagem, em que luz a gente vai usar, em que isso vai impactar as nossas crianças, nas pessoas que vão assistir isso, quais os pontos que precisamos debater e levar esse filme, esse movimento é mais que necessário, que é entender que para mudar essa realidade, a gente tem que pensar na concepção do filme desde o argumento do filme, pensar que ele seja representativo e inclusivo”, defende Vitória, diretora de Ana.
A Mostra Universitária dessa quarta-feira (18), terceiro dia do Curta Taquary, foi eficiente em trazer esse questionamento. Embora com a menor quantidade de filmes entre as competitivas da noite – quatro, contra oito da Mostra Curtas Fantásticos e cinco da Mostra Diversidade –, três dos filmes afirmavam muito fortemente o lugar do corpo negro no mundo, desde seu direito à existência negado pelo racismo institucional, explicitado nas narrativas de mães de jovens negros assassinados de Braços Vazios, de Daiana Rocha; suas possibilidades de organização e resistência em direção à defesa histórica de liberdade, como o documentário Entoado Negro, de Valtyennya Pires, sobre quilombolas paraibanos; passando pela festa que pode ser o empoderamento e a afirmação do corpo negro desviante, como Corpo Style Dance Machine, de Ulisses Arthur.
“Com esse lance da democratização do ensino superior, há muitos estudantes negros fazendo cinema agora. Acho que a principal força dos estudantes negros fazendo filme é contando um pouco histórias suas e dos seus, histórias familiares de pessoas que eles se identificam. Geralmente são filmes muito afirmativos, que têm o desejo de ir de encontro aos apagamentos históricos. Então, acho que isso é muito forte”, coloca Ulisses.
Acessibilidade, Ruralismo Fantástico e Narrativas Familiares
Além da Universitária, a noite contou com mais duas competitivas: a Mostra Curtas Fantásticos, que reuniam curtas-metragens com narrativas fantásticas, e a Mostra Diversidades, composta por filmes que retratavam ou abordavam questões sobre sexualidade e gênero. Além disso, a noite havia começado com a Sessão VerOuvindo, que exibiu os pernambucanos FotogrÁfrica, de Tila Chitunda, Um Brinde, de João Vigo, e Catimbau, de Lucas Caminha, com recursos de acessibilidade em plena praça aberta. Essa foi a primeira vez que o festival contou com exibições acessíveis e terá uma programação focada no tema.
Na Mostra Curtas Fantásticos, foram exibidos oito filmes de produtores de seis estados, incluindo Pernambuco. De um modo geral, o que chamou atenção na curadoria dessa mostra foram filmes que tratavam do fantástico em ambientes rurais ou extremamente naturalescos, os contrapondo e reinventando com doses do artificialesco e do non sense. Ultravioleta, do paraibano Dhiones do Congo, transformou o sertão do estado em um mundo apocalíptico inabitável, dominado pelos raios ultravioleta, em que as pessoas tentam sobreviver ao sol mortal; Maria Cachoeira, de Pedro Carcereri, por sua vez, se reapropriou de traços de narrativas lendárias do interior do país e de floresta, dialogando com traços do terror e do suspense – inclusive com algumas alusões a O Iluminado, de Stanley Kubrick.
A maior atenção, nesse grupo, poderia ser dada a A Retirada para um Coração Bruto, de Marco Antonio Pereira, que conta a narrativa de um senhor do interior de Minas Gerais que vive o luto da morte de sua esposa. Nesse processo, uma série de acontecimentos non sense dialogam com um perfil naturalista desse e de outros personagens do filme, sem necessárias justificativas narrativas, o que torna esse curta ainda mais fantasioso, uma qualidade a mais para um filme fantástico. Migração, de Cassiana der Haroutiounian, segue uma linha narrativa diversa desses, mas que potencializa também a intervenção do artifício no naturalismo. O curta foca nas cenas de percurso de um corpo-globo, ou seja, um corpo vestido por uma capa de espelhos se deslocando na neve e montanhas da Armênia, criando uma imagem fantástica ao contrapor natural e artificial, apostando em cenas que, provavelmente, nunca seriam ali vistas se não fosse o dispositivo cinematográfico.
Para além desses, vale apontar ainda o videoclipe pop apocalíptico B.O.Y., de Lucas Sá; Cosmos, de Rodrigo dos Santos, um ensaio-pensamento sobre tempo, memórias e tecnologias; O Espelho, de Dynho Silva, um curta de baixo orçamento que investe em clichês do terror, mas locados em espaços cotidianos do interior do país; e o curtíssimo filme-protesto C’est ne pas un film, de Igor Lopes e Tulio Vasconcelos.
A Mostra Diversidade, por sua vez, investiu em duas frentes de filmes. Um primeiro grupo focou na construção de narrativas familiares e na tematização das problemáticas envolvidas nessas relações. Em No Fim de Tudo, dirigido por Victor Cyriaco, do coletivo Caboré (RN), com interpretações sinérgicas de Silvero Pereira e Arly Arnald, é o filho gay quem, ao fim da vida da mãe, passa a cuidar dela, apesar do preconceito vivido dentro da própria casa quando mais novo. Ainda não, de Julia Leite, falou sobre o desconforto entre mãe e filha em relação às descobertas da sexualidade dessa em contraponto às expectativas daquela. E a construção em cima de fotografias e memórias de família de uma mulher trans, presente no curta Sobre uma Borboleta e seu Casulo, de R. B. Lima.
“Eu havia lido algo sobre que, no fim da vida de pais e mães, quem cuida muitas vezes é o filho ou a filha LGBT, justamente por não ter constituído uma família ou porque geralmente é o que fica em casa, ou porque esses filhos acabam sendo mais sensíveis a essas coisas, eu acredito. Foi com essa premissa que a gente escreveu o roteiro”, explicou explica Victor, diretor e corroteirista de No Fim de Tudo. “Para quem é LGBT, a temática família é uma coisa muito forte, porque, se a família aceita, é algo que as pessoas querem falar ‘Olha, minha família me aceita!”, ou, se não aceita, você quer dizer ‘Minha família não aceita, eu quero contar minhas dificuldades, etc.’. As pessoas sempre perguntam ‘E seus pais? Como eles reagem?’, porque realmente estamos desconstruindo muita coisa, mas esse ainda é um ponto muito delicado”, complementa.
Outro ponto de convergência foi o desenvolvimento de histórias em que as narrativas afetivas e sexuais eram construídas também com relação ao urbano e a ocupação da cidade. Na Esquina da Minha Rua Favorita com a Tua, de Alice Name-Bomtempo, trouxe a história de duas mulheres lésbicas que constroem suas relações por meio de caminhadas e vivências em locais e ruas do Rio de Janeiro, trabalhando também presenças e ausências e a construções das memórias do corpo também na urbanidade. Já Bala Perdida, um videoclipe da música homônima de Nação Zumbi dirigido por Sylara Silvério, percorre ambientes externos e internos da cidade do Recife, em que o nome da canção se torna uma metáfora sobre os encontros, desencontros, amores e desamores que se constituem e se desfazem também nos espaços e cenários da cidade e da intimidade.