Um Completo Desconhecido
James Mangold
A Complete Unknown, EUA, 2024. Drama. 2h21. Distribuição: 20th Century Studios Brasil/Disney
Com Timothée Chalamet, Elle Fanning, Monica Barbaro
Proeminente figura da contracultura norte-americana dos anos 60, Bob Dylan é dono de obra tão vasta quanto influente. Sua ascensão ao estrelato coincide-se ao borbulhante período histórico de reações artísticas e sociais ao conservadorismo capitalista pró-guerras: movimento hippie, geração Beatnik, o ativismo de Martin Luther King Jr., as novas ondas cinematográficas de diferentes países. O contexto de inconformismo moldou o espírito do jovem Robert Zimmerman que, em 1961, aos 20 anos, se muda para Nova Iorque com o objetivo de conhecer o ídolo Woody Guthrie, que convalescia da doença de Huntington no hospital psiquiátrico Greystone Park.
É nesta janela temporal que Um Completo Desconhecido (2024), dirigido por James Mangold, apresenta a história da eclosão de um dos mais profusos artistas ocidentais do século 20. A partir das visitas ao mentor musical, Dylan (Timothée Chalamet) conhece Pete Seeger (Edward Norton), músico rapidamente fisgado pelo talento do mancebo de Minnesota, a quem hospeda em sua própria casa. Após apresentações em clubes e bares da cena folk nova-iorquina, Dylan chama atenção de pessoas determinantes na sua trajetória, como o empresário Albert Grossman (Dan Fogler) e a cantora-parceira Joan Baez (Monica Barbaro), cujo relacionamento com Dylan é um dos ganchos dramáticos priorizados por Mangold. E este caminho narrativo se torna um dos principais problemas da obra.
Lamentavelmente menos preocupado com o processo artístico do protagonista, o diretor foca nos clichês sentimentais e designa diversos minutos em cenas que tentam abarcar o triângulo amoroso entre Bob, Joan e Sylvie (Ellen Fanning). O pano de fundo é utilizado para o filme inserir, com didatismo exagerado, as canções de Dylan como elemento narrativo. Após momento de separação entre personagens, o filme emenda cena de Chalamet interpretando “Don’t Think Twice, It’s Alright”. Muito comum na estrutura dos musicais clássicos, a disposição sequencial de canções e letras acompanha o desenvolvimento dos personagens; neste caso aqui, o roteiro parece forçar situações para incluir aquela música em específico. Outro exemplo: em seguida às notícias sobre a Crise dos Mísseis em Cuba, vemos Dylan se apresentando com a politicamente engajada “Masters Of War”.
Timothée Chalamet encarna o compositor de maneira irrepreensível. Além de fisicamente adequado, o ator reproduz a tão característica voz anasalada do músico e surpreende ao cantar e tocar (violão, gaita, piano) os hits do repertório. Diante da capacidade do intérprete, a impressão é que a narrativa se limita a orbitar entre as apresentações filmadas, ou seja, cenas com pouco desenvolvimento dramático intervaladas por clipes de Chalamet cantando as grandes músicas de Dylan. Sintoma usual em cinebiografias recentes que se mantêm na zona de conforto da superficialidade, como Back to Black (2024), Bob Marley: One Love (2024) e Bohemian Rhapsody (2018).
Vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 2016, Bob Dylan é notoriamente reverenciado pela magnitude de sua poesia. Sob a sombra das árvores plantadas por escritores como Henry Miller, Arthur Rimbaud e Jack Kerouac, Dylan foi, antes de tudo, um letrista assombroso. Os versos de canções célebres como “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)” e “Ballad of a Thin Man” denotam cuidadoso artesanato da palavra, expressas na oralidade do canto. De maneira decepcionante, Um Completo Desconhecido furta-se de mergulhar no labor criativo do Dylan escritor, poeta. Convencional e mesmo careta, o filme ignora inclusive a veia junkie do artista, cuja experiência com substâncias alucinógenas (heroína, LSD, anfetamina) é aspecto basilar da sua biografia. Assim como na versão assepsiada de Na Estrada (2012), de Walter Salles, a obra de Mangold é tão limpinha que cheira a amaciante.

O roteiro, escrito pelo diretor em parceria com Jay Cocks, é baseado no livro “Dylan Goes Electric!”, de Elijah Wald, que disseca a transição da fase folk-tradicional do cantor para a introdução da guitarra e demais instrumentos associados ao rock. Arrítmico, o longa tateia para salientar ao espectador a subversividade da conduta de Dylan, reservando para o terceiro ato o show do Newport Folk Festival de 1965, marco da personalidade provocativa do cantor. Contra a orientação de organizadores e amigos, Bob Dylan subiu ao palco do tradicional evento com a banda amplificada, para uma plateia dividida entre revolta e delírio. Longe de ser um grande clímax, a sequência é coerente à tentativa de estabelecer uma radiografia da natureza rebelde daquele jovem músico.
Quase 20 anos depois do concêntrico Johnny e June (2005), James Mangold volta a elaborar uma cinebiografia morna, dramaticamente retalhada, apenas pontualmente interessante – talvez mais atraente para o espectador com pouca familiaridade à trajetória de Dylan. Favorecido pela performance de Timothée Chalamet, o filme demonstra evidente fascínio ao protagonista, mas falha ao manter-se preso a normas narrativas estandardizadas para representar uma figura tão inconvencional.
O longa está indicado a 8 Oscar, incluindo Melhor Filme, Direção, Ator (Timothée Chalamet), Atriz Coadjuvante (Monica Barbaro) e Ator Coadjuvante (Edward Norton).
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