parque
Filme apresenta um terreno da fantasia e do desejo inspirado pelo mundo real do sexo clandestino. (Foto: Ciro Thielmann/Divulgação.)

“Parque de Diversões” rebate o conservadorismo ao mostrar a pegação como espaço de liberdade e fantasia

O cineasta mineiro Ricardo Alves Jr. conta como foi rodar um filme em que o sexo é mostrado sem preconceito e julgamento

A pegação é uma prática corriqueira da comunidade gay nas grandes cidades e os parques públicos são locais onde ela acontece com frequência, sobretudo depois que o sol se esconde. Alguns praticantes apenas flertam, puxam conversa e dão uns amassos, mas a maioria vai bem mais além e, por trás das moitas, muita gente cai na gandaia fazendo sexo anônimo consensual. 

Esse é o tema central do filme Parque de Diversões, do cineasta mineiro Ricardo Alves Jr., que foi selecionado para a competição internacional do Festival Internacional de Cinema de Marseille, na França, em junho do ano passado e que estreou em algumas cidades no final de janeiro.

A trama se desenrola à noite pelas ruas de Belo Horizonte e a maior parte das cenas transcorrem em um parque depois que uma das figuras que vagueia pelas ruas invade o local. 

Alves Jr., todavia, não realizou uma obra realista. Motivado pelo desejo de dar uma resposta às forças conservadoras e repressivas da atualidade, ele optou por uma representação da pegação como um espaço de liberdade e fantasia, como ele nos conta nessa entrevista.

A escolha de uma narrativa com pouquíssimos diálogos, investindo na plasticidade da imagem, na performance dos atores e na trilha musical, coloca o filme em uma chave mais experimental e poética. Você acredita que Parque de Diversões poderá atingir o público em geral, tão preso a narrativas convencionais?

Acredito que Parque está direcionado a um público disposto a se confrontar com novas experiências. Um público a fim de ser atravessado por uma linguagem que o coloca como espectador ativo, participante na conclusão da obra. Agora, também não acredito nessa ideia de “público em geral”. As pessoas são diversas, e cada filme pode ir encontrando seu público. Mas aqui fica o aviso: em Parque de Diversões, o espectador terá uma experiência que o provocará, tanto em termos de linguagem quanto no que está sendo representado.

Parque de Diversões.
A naturalidade do elenco se deu por muitos já se conhecerem previamente. (Foto: Ciro Thielmann/Divulgação).

 O elenco do filme está muito à vontade em suas atuações, vivenciando todas as cenas, incluindo as de sexo explícito, com bastante equilíbrio. Os atores/atrizes atravessam com naturalidade cenas cujo registro, por exemplo, é a prática de um boquete ou de uma chuva dourada. Por vezes, temos a impressão de que os integrantes já se conheciam. Como foi, então, a preparação desse elenco?

Primeiramente, o elenco já se conhecia, e alguns deles já tinham uma relação anterior ao próprio filme. Isso era algo muito importante para a direção. Percebo que muito do interesse pelo filme vem da impressão de realidade que ele gera, e isso só foi possível por essa escolha. A preparação foi realizada através de encontros com o elenco, conduzidos pelo roteirista Germano Melo, em que cada um trazia sua relação com o tema do exibicionismo e do voyeurismo. Nesse espaço seguro e coletivo, cada participante foi dizendo o que gostaria de performar no filme.

As cenas de sexo explícito foram mais difíceis de serem filmadas?

Curiosamente foi uma cena fácil de filmar, porque ela também aconteceria sem a presença da câmera. Mas para filmar uma cena de sexo explicito é necessário criar um espaço seguro e confortável para o ator ou atriz. No meu primeiro longa Elon Não Acredita na Morte, também tem uma cena de sexo explicito, e trabalhei da mesma maneira no Parque, com uma equipe reduzida e sempre em diálogo com o ator ou a atriz. Só filmo o que é de comum acordo entre direção e elenco. 

parque wCiro Thielmann
“O filme não tem a pretensão de ser uma representação real de um espaço de pegação”, diz Alves Jr. (Foto: Ciro Thielmann/Divulgação).

A pegação é uma experiência em que corpos exercem seus desejos, sexualidades e fantasias em locais públicos. Mas é também um espaço de tensão, de perigos (abordagem de assaltantes, de policiais), presença de michês que cobram para transar e que, por vezes, para alguns, é algo também excitante. Por que esse lado B da pegação não foi abordado no seu filme?

Parque de Diversões é um território inventado, ele não é um filme que tenta ser totalizante sobre a prática do cruising. O que busco nesse filme é criar um espaço possível de liberdade, sem julgamento moral ou castigo para quem pratica seus desejos mais secretos. É um mundo de fantasia, no qual seus participantes podem dançar com liberdade.

Percebemos em Parque de Diversões uma elaboração estética sofisticada, sobretudo na composição dos quadros, que utiliza os elementos naturais do parque, conjugados com uma iluminação finamente trabalhada. Esse refinamento, aliado à performance das personagens, cuja interpretação e coreografia de seus corpos são belas e tocantes, não corre o risco de potencializar a ideia de uma pegação glamourizada, quando a vivência real é muito mais crua e visceral? Mas, se foi essa a sua intenção, que reflexão e experiência você deseja despertar no espectador?

Como disse na resposta anterior, o filme não tem a pretensão de ser uma representação real de um espaço de pegação, mas sim criar um espaço lúdico para a existência dessa pegação. A imagem crua de um golden shower já foi amplamente divulgada por um ex-presidente, a imagem crua de um surubão no Arpoador foi viralizada nas redes sociais. Por que certos desejos que saem da normalidade precisam ser representados de maneira crua? É sobre isso que o filme provoca no espectador: ver beleza naquilo que a sociedade sempre nos fez ver como grotesco. E isso pode incomodar, desloca o olhar, como ver sofisticação estética em uma imagem que historicamente foi construída para rejeitar.

Fiquei curioso para saber mais sobre a construção do roteiro e a dinâmica das filmagens, sobretudo por ela acontecer praticamente em um único espaço, que se torna inclusive uma personagem da história, e por ser toda realizada à noite.

A escritura do roteiro está intrinsicamente relacionada ao casting. Como o Germano Melo, já tínhamos a ideia de fazer um filme sobre sexo que acontecesse inteiramente no Parque. Essa ideia surgiu durante as filmagens do nosso filme anterior Tudo o que Você Podia Ser. Estávamos filmando no Parque Municipal localizado na região central da cidade de Belo Horizonte. Esse espaço é muito significativo para a cidade e antigamente foi um lugar de encontros anônimos para a prática de pegação.

Já o elenco foi se formando a partir de um convite, realizado em redes sociais, a atores e não-atores interessados em compartilhar narrativas sobre voyeurismo e exibicionismo. A partir do interesse geral, selecionou-se um grupo — privilegiando personas queers — que tivesse afinidade e interesse em explorar a sexualidade como campo performático. Após diversos encontros e dinâmicas, onde ocorreram trocas narrativas confessionais sobre experiências em locais de sexo consensual coletivo, construiu-se um roteiro. Esse roteiro evocava as performances que cada ator gostaria de colocar em cena.

Leia mais: Um papo com André Antônio, diretor de “Salomé”: “o sexo e o tesão são algo centrais para a experiência subjetiva”

Do ponto de vista político, o filme com certeza é uma provocação ao conservadorismo por desfazer preconceitos e encarar as vivências homoeróticas sem falsos pudores. Por outro lado, pode provocar reações desses segmentos e expor um tipo de vivência, cujo atrativo, além do anonimato de quem pratica (respeitado no filme), é sua clandestinidade, ou seja, um de seus atrativos é ela ser quase invisível, conhecida apenas pela comunidade LGBTQIAPN+. Qual a sua opinião sobre esses aspectos?

Parque de Diversões não é o primeiro e nem será o último filme a abordar esse espaço de encontros anônimos para a prática sexual. E, portanto, o fato de trazermos essa prática não retira os atrativos da prática em si na realidade, que está acontecendo agora, nesse momento, em diversos lugares do mundo. Reafirmo, uma questão é o filme, território inventado para uma experiência de ficção a ser vista e experimentada no cinema, outra questão é a prática em si, que seguirá existindo em sua clandestinidade.

Não posso deixar de perceber que o filme gera, em polos tão antagônicos, uma questão comum a todos: o sexo é um tabu. Sua representação mexe com fatores históricos, religiosos, sociais e psicológicos.

Parque de Diversões está nos cinemas em algumas cidades. Acompanhe as estreias em outras praças no Instagram da produtora Quarta-Feira Filmes.

Leia mais entrevistas