Kasa Branca
Luciano Vidigal
BRA, 2025. 1h35, Drama. Distribuição: Vitrine Filmes
Com Ramon Francisco, Diego Francisco, Big Jaum
Ressignificar os corpos pretos no cinema. Há um movimento claro de produções brasileiras recentes, consoantes à proposta de diversificar a representação da negritude nas obras realizadas no país. André Novais Oliveira, Gabriel Martins, Glenda Nicácio e Jeferson De são alguns representantes desta “nova onda” imprescindível, cujas narrativas se apropriam do enunciado fílmico e se afastam do olhar estereotipado que, historicamente e até hoje, acomete os negros. Singelo e potente, Kasa Branca (2024), primeiro longa-metragem de ficção de Luciano Vidigal, chega para se somar ao rol de grandes êxitos do cinema nacional dos últimos anos.
Das pedrinhas sacolejadas ao lado dos trilhos com o passar do trem, até os singelos movimentos da câmera que entra e sai da casa de Dona Almerinda (Teca Pereira), a poesia garimpada por Vidigal é tocante. A lente do cineasta carioca apresenta uma geografia afetiva da favela enquanto lugar de sociabilidade e de redes de apoio. Os corres para ajudar a família e os amigos, a predominância das mães solo, o respiro que a arte propicia; o filme traça sensível mosaico a respeito daquelas vidas submetidas à dureza de viver na periferia de uma cidade caótica e paradoxal como o Rio de Janeiro.
O jovem Dé (Big Jaum) cuida com zelo da avó Almerinda, paciente de Alzheimer em estágio avançado. Determinado a tornar seus últimos dias mais significativos, ele conta com o apoio inabalável de seus dois melhores amigos, Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco), para enfrentar os desafios do cotidiano. A bonomia do trio é tão natural e espontânea que é impossível não se cativar pela amizade, alicerçada pelo acolhimento mútuo. Extremamente bem-humorado, o roteiro brinda o espectador com momentos sensacionais (e cinéfilos), como a vizinha apelidada de Bruxa de Blair que vive a cobrar o aluguel da casa onde vivem o protagonista e sua enferma avó.

Se o próprio cinema é referenciado no texto de Luciano Vidigal, outras manifestações artísticas estão fortemente presentes em Kasa Branca. O talento de Adrianim com a pintura/grafitagem, o sonho de Talita (Gi Fernandes) em se tornar cantora, a participação especial do rapper L7nnon no evento para arrecadar grana aos meninos; o filme dignifica esta força da cultura para a juventude periférica. Como não poderia deixar de ser, símbolos do empoderamento preto também estão ali, pincelados pela singela direção de arte de Rafael Cabeça e Alexandre Magalhães (por exemplo, os quadros com Nina Simone e Zumbi dos Palmares no apartamento de Talita).
Obviamente, as injustiças e violências sociais da realidade dos personagens não são maquiadas por Vidigal. Tome-se como amostra a dolorosíssima cena da abordagem policial; a maldade destilada nas palavras dos PMs que extorquem Adrianim e Dé é o retrato de como o Estado contribui para as mazelas que oprimem os mais pobres. Difícil conter as lágrimas (de tristeza, de raiva), principalmente pela atuação estupenda de Diego Francisco durante a sequência. Jovem ator com futuro promissor, merece ser acompanhado com atenção – ele também participou, com louvor, da última temporada da série Falas Negras, da Rede Globo.
Mas Kasa Branca utiliza a lente da ternura para contar sua história. Até uma cena essencialmente sexy, o ménage à trois numa laje, adquire contornos afetuosos pelo aprimorado trabalho da câmera do diretor, bem como pela naturalidade do elenco. A corporeidade latente da juventude é representada sob a pulsão dos sentimentos, dos laços construídos a partir da coletividade. Mesmo com tantas dores, ninguém ali está sozinho. O título do filme me aludiu ao Terreiro da Casa Branca, centro de candomblé considerado entre os mais antigos do Brasil e primeiro monumento negro do país a ser reconhecido como patrimônio cultural brasileiro pelo Iphan. Símbolo fundamental de luta coletiva do povo negro que abriu caminhos para outros reconhecimentos da cultura preta no país.
Sem medo de soar desmoderado, creio que o filme de Luciano Vidigal pode vir a se tornar um marco para o cinema brasileiro contemporâneo. Autêntica e narrativamente profusa, a história dos três amigos ilumina até mesmo corações mais pessimistas. O cliché é válido e indispensável: uma obra que nos inclina a (voltar a) ter fé na humanidade.
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