Em janeiro de 2014 o recém graduado em sociologia pela École normale supérieure, Édouard Louis, ganhou a crítica francesa e mundial com a publicação de sua primeira obra literária, O fim de Eddy, publicano no Brasil pela editora Tusquets em 2018. O romance autobiográfico rememora através de uma narrativa honesta e intimista os anos de uma infância repleta de homofobia, violência e conservadorismo. Cru, o livro de estreia do escritor e tradutor se utiliza do tom quase confessional para construir uma passagem para dentro de suas memórias.
Publicado em mais de 20 idiomas, a excelência da escrita de Louis continuou na obra Histórias da Violência e em 2023, traduzido para o português pela editora Todavia, Quem Matou Meu Pai e Lutas e Metamorfoses de Uma Mulher. Através dessa dupla de livros de auto-ficção – muito utilizada e popularizada pela escritora Annie Ernaux – o autor percorre as histórias do pai e da mãe e consequentemente entrega ao leitor mais detalhes de sua infância e adolescência.
O pai é um homem grosseiro, duro nas palavras. Ele era operário em uma fábrica até um acidente que o deixa impossibilitado de seguir com a normalidade da vida. A mãe é uma mulher no segundo casamento, dona de casa, por vezes obstinada em mudar de vida, por vezes conformada com os dias iguais e com a violência.
A forma como Édouard Louis escreve ambas as obras é particular. Ele parece olhar para momentos recortados de uma grande tela de família e é duro em suas interpretações, duro na forma que assiste os progenitores em suas vidas e descreve-os para seus leitores, mas também é extremamente ciente de cada palavra, cada parágrafo, cada pontuação. Apesar de repletos de dores, a mãe e o pai são violentos como reflexo de suas vivências e apesar de talvez injusto, Louis parece os odiar e os amar ao mesmo tempo. Em Quem Matou Meu Pai e Lutas e Metamorfoses de Uma Mulher estão explicitadas as contradições de ser.
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Quando abre-se o livro Quem matou meu pai a primeira página em texto da obra termina assim: “O fato de apenas o filho falar, e somente ele, é algo violento para os dois: o pai está privado da possibilidade de contar sua própria vida e o filho queria uma resposta que jamais obterá”. Parece ser em busca dessa resposta impossível de ser revelada que o autor segue escrevendo pelas próximas páginas e parece ser, acima de tudo, dolorido.
Em uma remontagem da casa de infância onde morou durante a infância, localizada no vilarejo de Hallencourt, norte da França, das pessoas que o cercavam e dos sentimentos que o percorriam, a narrativa do livro deixa clara a vontade de seu autor em conhecer quem era seu pai para além dos retalhos já conhecidos. Sendo a distância entre eles uma regra clara da convivência pouco desenvolvida, o resultado é um pai e filho que não se reconhecem.
Emocionante, cada linha destila um pouco da violência em suas diversas formas vividas por Édouard Louis nas mãos do pai, porém mais do que isso, com o passar da leitura se torna impossível não compreender que toda a vida daquele homem bruto foi marcada pela pobreza, pela deficiência das políticas públicas, pela invisibilidade.
Édouard escreve: “Será que não é preciso repetir, quando falo da sua vida, já que de vidas como a sua ninguém quer saber? Será que não é preciso repetir até que nos ouçam? Para forçá-los a nos ouvir? Será que não é preciso gritar? Não tenho medo de me repetir, porque o que escrevo, o que eu digo, não atende às exigências da literatura, mas às da necessidade e da urgência, às do fogo”.
Ao longo das quase 70 páginas, a narrativa de Édouard Louis é um chamamento de culpa aos verdadeiros culpados, é um retrato da França que só se enxerga utilizando as lentes corretas, uma ode à dor já doída e a o reerguer-se. Os culpados por toda a dor possuem nome e sobrenome e o autor não teme em expô-los.
“Hollande, Valls, El Khomri, Hirsch, Sarkozy, Macron, Bertrand, Chirac. A história do seu sofrimento tem nomes. A história da sua vida é a história dessas pessoas que se sucederam para abate-lo. A história do seu corpo é a história desses nomes que se sucederam para destruí-lo. A história do seu corpo acusa a história política”. Todo o sofrimento e os resultados disso se repetem categoricamente na vida de sua mãe, em Lutas e Metamorfoses de Uma Mulher. Assim como a relação com o pai, a distância entre mãe e filho é tema principal e a busca por uma mulher que não parece estar mais ali, é delicado fio narrativo.
Como descrita pelo próprio autor, sua mãe era uma pessoa aprisionada dentro do espaço doméstico. Alguém refém da categórica violência lhe imposta pelo marido, da violência lhe imposta por sua classe social, pelos vizinhos e por ser mulher em um mundo onde isso tem grande peso.
Abandonada diversas vezes, inclusive pelo sistema político, o reflexo da vivência da personagem se reflete em uma passagem já pela metade da narrativa, onde Louis explica que um dia, quando ele já havia se tornado um fugitivo do destino e não mais sofria com o dinheiro ínfimo e o bullying nos anos escolares, quando já era um escritor de renome, sua mãe lhe telefonou pedindo para trabalhar para si. Na sua ideia, o filho poderia lhe deixar uma quantidade de dinheiro e como forma de ‘merecer’ o valor, limparia assiduamente a casa do homem.
Ele se pergunta então se havia se tornado “o corpo que você odiava”, se havia se tornado mais um a abandoná-la em uma realidade oprimida para fazer parte dos opressores. É triste acompanhar a jornada de mãe e filho, em diferentes rotas. “A maioria das pessoas que contam a trajetória de uma classe social para outra relata a violência que sentiram – por inadequação, por desconhecimento dos códigos do mundo em que entravam. Eu me lembro principalmente da violência que eu infligia. Queria usar minha nova vida como uma vingança contra a minha infância. […] Eu me tornei um desertor de classe por vingança, e essa violência se somava a todas aquelas que você já tinha vivido”.
Diante da dor do reconhecimento do afastamento, Lutas e Metamorfoses de Uma Mulher soa como uma carta confessional para a mãe. Como a oferta de um colo, de um afago, para a mulher que está distante, mas que jamais estará distante.
Foto: Mariusz Kubik/Wikimedia Commons.
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